A judicialização da mediação no poder judiciário brasileiro: mais do mesmo nas disputas familiares?

por Cristiana Vianna Veras e Roberto Fragale Filho

RESUMO

O texto distingue, inicialmente, a mediação e a conciliação como meios de autocomposição do conflito, apontando suas principais diferenças a partir do papel que a figura do terceiro (mediador e conciliador) desempenha nestes institutos. Em um segundo momento, identificamos iniciativas de legislar a mediação de forma a desenhar seu movimento de institucionalização normativa no âmbito do poder judiciário brasileiro. Ao final, levando em conta as particularidades inerentes à mediação como uma forma de solução diferente da conciliação e do modelo adjudicatório, apresentamos algumas reflexões sobre a forma como as práticas da mediação podem ser desenvolvidas no campo das disputas judiciais relativas aos conflitos familiares.

Introdução

O presente artigo traz algumas ideias que poderão servir como pontos de problematização sobre o processo de institucionalização da mediação no poder judiciário brasileiro. Em momentos de transformação social e cultural faz-se importante a precisão de elementos que envolvam as novidades desses novos cenários para que possamos nos colocar de acordo (ou ao menos termos essa pretensão) sobre o que estamos falando. Entendemos que o tema da mediação dentro do campo socioprofissional do direito faz parte desse processo de possíveis “novidades” relativas a uma cultura organizacional com as suas respectivas práticas, podendo indicar novas formas de acesso à justiça de grupos e/ou indivíduos.1 Nesse sentido é que distinguimos, em um primeiro momento, a mediação e a conciliação como meios de autocomposição do conflito, apontando as principais diferenças a partir do papel que a figura do terceiro (mediador e conciliador) desempenha nestes institutos.2 Essa precisão é importante quando tratamos da mediação, ou seja, é uma estratégia de delimitação geral do tema construída a partir da diferenciação entre mediação e conciliação.

  • 3 Sobre os caminhos da conciliação no Brasil, ver Leite (2003). Em uma audiência de conciliação no pr (…)

2As diferenças entre esses dois institutos têm especial importância para o contexto brasileiro, pois há um grande receio por parte dos estudiosos e entusiastas da implantação da mediação judicial de que a mediação venha a percorrer o mesmo caminho que a conciliação, cuja prática nos tribunais brasileiros possui ares profundamente adjudicatórios.3 O enfoque dado ao tratamento do conflito assume especial relevância nas disputas familiares, pois nelas estão presentes controvérsias de natureza essencialmente subjetiva, que escapam a uma abordagem mais restrita do conflito. Assim, a forma dispensada ao tratamento do conflito influencia diretamente o resultado do instituto aplicado.

3O funcionamento do campo do direito está adstrito (entre outras variáveis) a um balizamento institucional que é estruturado (entre outra formas) normativamente. Em razão desse funcionamento identificamos, em um segundo momento, algumas iniciativas legislativas sobre a mediação de forma a desenhar o movimento de sua institucionalização normativa no âmbito do poder judiciário. Temos uma clara percepção de que tal movimento não diz respeito às práticas relativas ao funcionamento do campo do direito, mas tão somente à sua regulamentação normativa. Em um terceiro e último momento, levando em conta as particularidades inerentes ao instituto da mediação e as diretrizes previstas na Resolução n.º 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apresentamos algumas reflexões sobre variáveis das práticas da mediação que possam ser ou estão sendo desenvolvidas no campo das disputas judiciais relativas aos conflitos familiares.

4Portanto, o percurso aqui proposto articula-se a partir de referências bibliográficas e normativas no contexto brasileiro, que conhece uma empiria bastante embrionária acerca da mediação. Ao examinar o incipiente processo de institucionalização da mediação no Brasil, constatamos que suas potencialidades são minimizadas pela apropriação judicial, que a transforma em instrumento circunstancial de redução de estoque processual. Privilegiamos a análise da mediação, após distingui-la da conciliação, em virtude de seu ineditismo no Brasil e por entender que ela pode ser uma importante alavanca no acesso ao direito e à justiça da família e das crianças. Entretanto, a hipótese aqui levantada é que sua apropriação pelo poder judiciário brasileiro pode produzir um pouco mais do mesmo que já se faz em termos adjudicatórios. Ao cabo, ainda que pautados por uma análise carente de uma comprovação empírica – o que, certamente, revela-se a próxima etapa de uma investigação sobre nosso objeto –, emerge a certeza de que evitar o desperdício de alternativas e a manutenção de uma mesma gramática homogênea (e judicial) é algo essencial para que novas configurações de acesso à justiça sejam possíveis.

Mediação e conciliação: duas formas diferentes de autocomposição do conflito

  • 4 Não existe um conceito único de mediação e o sentido e significado a ela atribuídos diferem de uma (…)
  • 5 Importante ressaltar que a mediação e a conciliação podem ser exercidas tanto no ambiente judicial (…)
  • 6 Gabbay (2011: 49 ss.) reconhece que há relevantes diferenças entre mediação e conciliação, sendo qu (…)

5O tema da mediação vem ganhando espaço no campo do direito e no debate acadêmico a partir de diferentes questões.4 Estaremos aqui particularmente interessados em uma dessas questões: a distinção entre conciliação e mediação.5 Isto porque, apesar de a finalidade conciliatória em comum, elas não devem ser tomadas como sinônimos (embora muitas vezes o sejam), pois os institutos apresentam diferentes objetivos e princípios, que merecem ser destacados.6 Entre as diferentes variáveis comparativas possíveis, estamos particularmente interessados na abordagem que os institutos da mediação e da conciliação dão ao tratamento do conflito, ou seja, como esse último é por eles representado e elaborado.

6Para Warat (2004: 60 ss.), as diferenças entre mediação e conciliação são gritantes, pois esta última não trabalha o conflito, mas ignora-o e, assim, não o transforma, como faz a mediação. O conciliador exerce a função de um “negociador do litígio”. A mediação não se preocupa com o litígio, nem com a verdade formal presente nos autos judiciais, e o mediador exerce a função de ajudar as partes a redimensionar o conflito, “entendido como conjunto de condições psicológicas, culturais e sociais que determinam um choque de atitudes e interesses no relacionamento das pessoas envolvidas” (ibidem). Segundo esse mesmo autor (ibidem), os juristas pensam que o conflito é algo a ser evitado, pois o entendem como litígio, como uma controvérsia que, por sua vez, se limita a questões de direito ou patrimônio e, assim pensando, deixam de abordar e tratar questões subjetivas da disputa.

7A mediação busca auxiliar as pessoas a construir consensos sobre uma determinada desavença, ao passo que a conciliação tem nos acordos o seu maior objetivo, quando não o único. A mediação privilegia a restauração da relação das partes, desconstruindo o conflito, permitindo a manutenção de um diálogo entre as partes, o que se revela fundamental para a construção da solução, sobretudo, nas relações familiares. Como afirma Almeida:

Sabemos que a construção de acordos não garante que seja efetivamente dirimido o conflito entre as partes e, por vezes, chega a acirrá-lo. Todavia, a base da pacificação social reside no restauro da relação social e na desconstrução do conflito entre litigantes. A permanência do conflito possibilita a construção de novos desentendimentos ou de novos litígios: esgarça o tecido social entre as pessoas envolvidas em uma discordância e entre as redes sociais que as apoiam e das quais fazem parte. A permanência do conflito é, portanto, terreno fértil para manter latente a possibilidade de novas discórdias e o ânimo de desavença entre os grupos sociais de pertinência dos litigantes. (2009: 94 ss.)

8Assim, por voltar-se para a restauração da relação social, a mediação vem sendo indicada para os conflitos entre pessoas cuja relação vai se prolongar no tempo, seja por vínculos de parentesco, trabalho ou vizinhança. Para Pinho (2008), a mediação deve ser utilizada para os relacionamentos interpessoais continuados e não se presta a conflitos “descartáveis”. A razão de ser da mediação estaria nos conflitos que surgem a partir das relações duradouras, ou seja, que existem antes da lide e que permanecerão independentemente da solução dada ao caso, como é o caso das relações familiares. Neste sentido, a mediação se apresenta como um poderoso instrumento de solução de conflito alternativo ao modelo adjudicatório nos conflitos e disputas (judiciais ou não) de família.

9A conciliação busca o acordo entre as partes envolvidas no conflito, isto é, o objetivo é chegar ao acordo, e não trabalhar o conflito. A finalidade é pôr fim à demanda, seja judicial ou extrajudicial, e para isto, o conciliador deve sugerir possibilidades de entendimento entre as partes. Se o acordo não ocorrer, não houve sucesso na conciliação. Desta forma, a conciliação apresenta sintonia com o paradigma adversarial de uma disputa, onde uma parte perde para que a outra ganhe, pois são demandas pessoais. O acordo é firmado com a coautoria do conciliador e das partes.

10Na mediação, o mediador não deve apresentar soluções ou alternativas para solucionar o conflito ou encerrar a demanda. A proposta é a de uma mudança de paradigma no contexto da resolução de conflitos, buscando atender às demandas de todos os envolvidos na desavença. Quando a mediação é exitosa, acredita-se que ela satisfaz a todos, e é fruto de uma construção comum. Acredita-se que, neste modelo, o acordo será cumprido por aqueles que participaram da construção da solução, o que evita o surgimento de novas disputas.

  • 7 Assim, por exemplo, em conflito familiar entre pai e mãe sobre quem deve ficar com a guarda do filh (…)

11O mediador deve auxiliar as partes na avaliação e no redimensionamento do conflito, agindo como um “facilitador do diálogo”. A mediação busca devolver às partes o protagonismo sobre suas vidas no tocante à solução de suas desavenças. Neste sentido, distancia-se do modelo paternalista (e estatal) onde um terceiro deve solucionar o conflito (Almeida, 2009: 96 ss.). Importante destacar que, no processo de mediação, as partes não se restringem ao autor e réu de uma ação judicial, e todos aqueles que de uma maneira ou de outra estão envolvidos no conflito também podem participar (rede de pertinência).7

  • 8 A Lei n.º 9.099/1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, estabelece, em seu (…)

12A conciliação tem uma abordagem monodisciplinar e, geralmente, é conduzida por profissionais da área do direito.8 Apesar de nos conflitos familiares judiciais também participarem psicólogos e assistentes sociais, a abordagem do conflito e a condução do acordo tendem a ser monodisciplinares. Já na mediação, a análise passa por um olhar multidisciplinar, pois deve ser realizada por dois mediadores (co-mediação), cuja formação universitária ou atuação profissional não adquire maior relevância (com exceção dos casos que demandam conhecimento específico sobre o objeto do conflito), e o que conta é a capacitação na prática da mediação. Neste sentido, defende Almeida:

Por ser um tema transdisciplinar – perpassando pelo Direito, a Psicologia, a Antropologia, a Filosofia e a Sociologia –, a mediação apregoa que o olhar de análise para os desentendimentos deva ser multidisciplinar, mesmo quando a condução dos trabalhos se dê por um único mediador – mediação solo. Dessa forma, convida os mediadores a atuarem regidos por uma lente multifocal que viabilize reconhecer e articular os diversos fatores – sociais, emocionais, legais, financeiros, entre outros – que componham as desavenças. (2009: 97 ss.)

13Diferente da conciliação, que em geral se desenvolve em um único encontro, o processo de mediação pressupõe alguns encontros, pois geralmente quando as pessoas chegam à mediação, estão baseadas em posições rígidas com as quais não se consegue negociar. O mediador vai ajudar as partes a identificar os interesses que estão por trás das posições e as necessidades que legitimam seus interesses, de modo que possam dialogar e encontrar uma solução por elas próprias. São utilizadas diversas técnicas para auxiliar os mediandos a encontrar uma solução, porém, elas não são apresentadas, tais como: sumarizar o que foi apresentado pela parte, checar os pontos principais do conflito, elencar as questões levantadas, parafrasear o que foi dito, apresentar a fala de maneira positiva, delimitar o que será tratado nas sessões de mediação, etc. (Rosenberg, 2006). Um processo de mediação pode levar tempo e, por isto, a duração não pode estar pré-determinada.

14Assim, podemos dizer que a conciliação apresenta uma rápida solução ao litígio, enquanto a mediação não apresenta esta característica. Somente podemos pensar a mediação como um processo célere de autocomposição do conflito quando comparamos ao tempo de uma ação judicial, a contar da distribuição da ação até à extinção do processo, pois o tempo de uma mediação é ditado por aqueles que nela estão envolvidos.

  • 9 Cf. supra nota 3.

15A distinção entre conciliação e mediação não se restringe aos seus aspectos teóricos e deve romper os limites do âmbito acadêmico9 para se inserir nos debates institucionais e, em especial, no processo de institucionalização da mediação, e de suas práticas, pelo poder judiciário brasileiro. A assimilação dos diferentes objetivos inerentes a cada um desses institutos repercutirá nas práticas da mediação no campo do direito e nas soluções dos diversos conflitos sociais.

A regulação normativa da mediação como processo em construção: algumas tentativas de legislar e a resolução CNJ n.º 125/201010

  • 10 A íntegra da resolução pode ser encontrada na página do CNJ. Consultado a 05.07.2014, em http://www (…)
  • 11 Gabbay (2011: 164 ss.) ressalta que há no Brasil uma grande expectativa na criação de um marco lega (…)
  • 12 Para um maior detalhamento do contexto e iniciativas destes projetos de lei, ver Pinho (2011).

16No Brasil, embora ainda não exista uma lei específica regulando a mediação,11 o debate em torno da sua legalização não é recente e existem algumas tentativas neste sentido, como o Projeto de Lei da Mediação (PL n.º 4.827/1998 e seu substitutivo no Senado Federal ao Projeto de Lei da Câmara n.º 94/2002) e a reforma do Código de Processo Civil com o Projeto de Lei do Senado (PLS) n.º 166/2010 e o PL n.º 8.046/10,12 além dos PLS n.º 517/2011, PLS n.º 405/2013, PLS n.º 434/2013 e PL n.º 7.169/2014.

17A primeira tentativa de legalização foi em 1998, com o PL n.º 4.827 apresentado pela deputada Zulaiê Cobra à Câmara dos Deputados. Era um projeto simples e conciso que trazia apenas sete artigos sobre a mediação judicial e extrajudicial. Em 2002, este projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e enviado ao Senado Federal, onde foi aprovado em 2006 o substitutivo, que institucionaliza e disciplina a mediação como método de prevenção e solução consensual de conflitos. Porém, em razão das diversas emendas, o trâmite legislativo exigiu sua reapreciação pela Câmara de Deputados, onde permanece até hoje aguardando a aprovação pelo plenário. A reforma do Código de Processo Civil se iniciou com a apresentação do PLS n.º 166/2010, que foi submetido a discussões por uma comissão de senadores. Posteriormente, o senador Valter Pereira apresentou um substitutivo ao referido PLS, que fez pequenas alterações na previsão da mediação e da conciliação, e recebeu na Câmara dos Deputados o número de PL n.º 8.046/201013 (Pinho, 2011: 5). Este projeto de lei prevê a figura do mediador judicial como auxiliar de justiça e dispõe que cada tribunal pode criar um setor de conciliação e mediação ou programas destinados a estimular a autocomposição. Em seus artigos 144 a 153, ele estabelece os princípios que regem os institutos (da independência, neutralidade, autonomia da vontade, confidencialidade, oralidade e informalidade), o papel do mediador e do conciliador, a forma como estes podem ser escolhidos pelas partes, o registro de conciliadores e mediadores no tribunal, as exigências para fins do cadastro (como ter sido capacitado em curso realizado por entidade credenciada ao tribunal) e os limites de atuação dos advogados inscritos nos cadastros. Ao determinar que os magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público devem estimular a conciliação e a mediação, ele estabelece, nos parágrafos do artigo 145, uma distinção entre conciliação e mediação em função do papel do mediador, a seguir:

Parágrafo 1.º – O conciliador poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.

Parágrafo 2.º – O mediador auxiliará as pessoas interessadas a identificarem, por si mesmas, alternativas de benefício mútuo.

  • 14 Gabbay (2011: 170 ss.) lembra que com as funções do CNJ (artigo 103-B da CF/88) de planejamento est (…)

18Neste cenário, onde constatamos diferentes iniciativas de legislar sobre a mediação bem como diversas iniciativas por parte do poder judiciário em estimular a conciliação,14 no final de 2010, o CNJ chamou para si a atribuição de estabelecer as regras de implantação e utilização deste instituto no âmbito do serviço público da administração da justiça. Com a Resolução CNJ n.º 125/2010, foi instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, ressaltando os denominados meios consensuais que incentivam a autocomposição de litígios e a pacificação social. De acordo com esta resolução, cabe ao judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade. Assim, deve o judiciário organizar em âmbito nacional os serviços judiciais prestados bem como os demais mecanismos de soluções de conflitos como a mediação e a conciliação. Os Tribunais de Justiça devem criar Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e instalar Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania para atender aos juízos, juizados ou varas. Cada unidade dos Centros Judiciários deverá abranger o setor de conciliação de conflitos pré-processual, processual e setor de cidadania. A administração do centro e supervisão do serviço de conciliadores e mediadores caberá a um juiz coordenador designado pelo presidente do tribunal. Como ressalta Gabbay, um dos focos da resolução é:

criar uma disciplina mínima e uniforme para a prática dos meios consensuais de solução de conflitos no Judiciário, que funcionam como um importante filtro da litigiosidade, além de estimular em nível nacional a cultura da pacificação social, estabelecendo diretrizes para a implantação de políticas públicas que tracem caminhos para um tratamento adequado de conflitos. (2011: 172 ss.)

19Neste sentido, a Resolução CNJ n.º 125/2010 disciplina todo o processo de mediação judicial e pré-processual e de conciliação, desde a criação dos centros próprios para sua aplicação, passando pelo funcionamento deles, formação dos serventuários, mediadores e conciliadores, até às normas de ética.

20O PLS n.º 517/2011 trata da mediação judicial e da extrajudicial. Define que o mediador é o terceiro imparcial, com capacitação adequada, que conduzirá o processo de comunicação entre as partes. O PLS n.º 405/2013 dispõe sobre mediação extrajudicial e estabelece que o mediador pode ser qualquer pessoa capaz desde que tenha a confiança das partes e se considere capacitada para fazer mediação. O objetivo do mediador é buscar o entendimento das partes. O PLS n.º 434/2013 aborda normas gerais sobre o instituto da mediação e inova ao prever a mediação online, permitindo sua utilização nos casos de comercialização de bens ou prestações de serviços via internet. O recente Projeto de Lei n.º 7.169/2014, mesclando os três PLS anteriores, dispõe sobre a mediação entre particulares como meio alternativo de solução de controvérsias e sobre a composição de conflitos no âmbito da administração pública, considerando a mediação como a atividade técnica exercida por terceiro imparcial, sem poder de decisão, que auxilia e estimula as partes a desenvolver soluções consensuais para a controvérsia.

Desafios na implantação da prática da mediação no âmbito do poder judiciário brasileiro

  • 15 Assim, na Resolução afirma-se: “Considerando que a conciliação e a mediação são instrumentos efetiv (…)

21O processo de apropriação e institucionalização da mediação no âmbito do judiciário brasileiro pelo CNJ, e sua aplicação pelo poder judiciário, ocorre em um contexto que se apresenta, de um lado, por uma necessidade de reforma deste poder, que não dá conta de solucionar os conflitos sociais por meio de ações judiciais e, por outro, por uma ausência de lei específica, regulamentadora da prática da mediação no Brasil. Há, portanto, um terreno fértil para que diferentes métodos de resolução de conflitos surjam e sejam implantados, sobretudo se estes métodos se prestam a “desafogar” o judiciário. Diante da falta de regulamentação específica, a mediação pode se apresentar ainda mais atraente, já que pode ser “moldada” de acordo com as necessidades e os anseios daquele que dela se apropria. Por outro lado, a apropriação da mediação pelo CNJ como meio de “desafogar” o poder judiciário é um dos motivos que levaram à criação da Resolução n.º 125/201015 e, de certa forma, reflete a própria abordagem normativa da mediação nas suas diferentes tentativas de legalização. Neste sentido, afirma o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados sobre o PL n.º 4.827/1998 (na forma do substitutivo do Senado):

  • 16 O inteiro teor do parecer está disponibilizado na página da Câmara dos Deputados. Consultado a 20.1 (…)

A mediação, como método alternativo extrajudicial privado de prevenção e solução sigilosa de conflitos, deve sobremaneira aliviar o enorme trabalho do Poder Judiciário. A mediação é tão antiga quanto a humanidade, e pode ser exercida por qualquer pessoa, desde que tenha formação técnica adequada. Um terceiro imparcial expressa suas opiniões sobre o caso, que podem ou não ser acatadas pelas partes, oferecendo-lhes uma solução pacífica e amigável do conflito. Esse procedimento pode ser suficiente para solucionar o problema entre as partes, descartando, então, os transtornos provocados pela via judicial.16 (grifos nossos)

22Neste contexto, algumas questões se destacam, como por exemplo, a forma como a mediação será exercida nos Centros de Mediação, pois a finalidade de uma mediação não é a de evitar uma ação judicial, mas dar uma nova abordagem aos conflitos. Ou seja, não se busca propriamente evitar a judicialização de um conflito (até mesmo porque algumas vezes este é o único caminho possível), mas permitir que este seja resolvido a partir das próprias partes nele envolvidas, com base em suas necessidades e possibilidades. Não se trata do exercício de um direito, mas de uma solução construída pelas partes envolvidas no conflito. Neste caso, podemos dizer que a questão “legal” e “jurídica” da disputa, no sentido de saber onde está o direito de cada um, não se apresenta tão relevante, e não direciona a condução do processo de mediação.

  • 17 Faz-se importante ressaltar que nosso interesse aqui não está voltado para a conciliação, mas sim d (…)

23Entretanto, não obstante ser essa a sinalização dada normativamente, a forma como os atores irão se apropriar e gerenciar as práticas relativas às orientações normativas sobre a mediação está dentro de um contexto de ações e representações sobre o conflito, que pode ser um obstáculo para a implementação de novas práticas. Essa dificuldade foi sinalizada no contexto do funcionamento dos Juizados Especiais relativamente à prática da conciliação17 por Leite (2003), ao afirmar que seu trabalho de campo sobre a conciliação nos Juizados Especiais demonstrou que, apesar de os conciliadores receberem orientação teórica no sentido de que devem apresentar alternativas de solução de conflito, como um terceiro externo ao litígio, na prática, esses papéis não são assim desempenhados, e o conciliador transmite as regras do jogo a partir de uma posição bem definida. E exemplifica com a postura adotada por um conciliador, ao sentir que as partes estavam intransigentes e não haveria acordo:

Esta é uma audiência de conciliação para tentar um acordo, o que exige sempre que alguém ceda em alguma coisa. Se o acordo não sair, eu vou marcar a audiência com o juiz, que vai decidir a questão. Aí, o senhor vai ter que constituir um advogado para se defender, vai gastar dinheiro com o advogado e com as custas do processo e, no final, vai ter que pagar de qualquer maneira porque ele tem razão e vai executá-lo. Então, é melhor o senhor pensar bem e fazer uma proposta. […]. Assim, a conciliação obtida no Juizado não implica que tenha havido negociação entre as pessoas envolvidas no conflito, de forma a serem consideradas as possibilidades e as vontades de cada uma delas, nem que se tenha tentado uma interação entre elas. Como se observou, nunca foi abandonada a posição antagônica ou a posição entre os participantes da ação, que saem da audiência com a sensação de vencedores e perdedores, sendo o acordo obtido de uma forma de definição das condutas sociais consideradas certas ou erradas. (Leite, 2003: 99 ss.)

  • 18 Gabbay (2011: 204) ressalta que a triagem do conflito é um momento delicado na implantação dos prog (…)

24De uma análise inicial dos dispositivos da Resolução CNJ n.º 125/2010, podemos perceber uma apreensão das “novas formas de resolução de conflitos” a partir de um modus operandi próximo ao dos processos judiciais próprio dos tribunais, ou seja, com termos, definições e procedimentos semelhantes aos de uma disputa judicial, ainda que em audiência de conciliação. Neste sentido, por exemplo, estabelece o seu artigo 8.º que “os tribunais deverão criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Centros), unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela realização das sessões e audiências de conciliação e mediação”. No processo de mediação, não há audiência, mesmo que seja uma mediação judicial. Da mesma forma, o parágrafo primeiro do referido artigo permite a realização de sessões de conciliação e mediação nos próprios juízos, Juizados ou Varas designadas, “desde que o sejam por conciliadores e mediadores cadastrados junto ao Tribunal (inciso VI do artigo 7.º) e supervisionados pelo Juiz Coordenador do Centro (artigo 9)”. Como se desenvolverá uma mediação, dentro do próprio tribunal, e sob a supervisão de um juiz? O parágrafo 2.º do artigo 9.º estabelece que “os tribunais deverão assegurar que nos Centros atuem servidores com dedicação exclusiva, todos capacitados em métodos consensuais de solução de conflitos e, pelo menos, um deles capacitado também para a triagem e encaminhamento adequado dos casos”. Por que um servidor? Com base em que ele fará esta triagem e encaminhamento?18 Diante das práticas dos Juizados Especiais, podemos pensar que este servidor, já tão habituado com as rotinas judiciais, venha a fazer uma triagem a partir de sua bagagem jurídica, sobre seu próprio entendimento da possibilidade ou não de uma ação judicial, ou mesmo do êxito de uma ação (Leite, 2003).

25Apesar de a Resolução CNJ n.º 125/2010 estabelecer que o programa para promover ações de incentivo à autocomposição de litígios e à pacificação social por meio da conciliação e da mediação (artigo 4.º) será implementado com a participação de rede constituída por todos os órgãos do poder judiciário e por entidades públicas e privadas parceiras (artigo 5.º), o próprio CNJ internalizou no âmbito do poder judiciário a formação e capacitação dos mediadores e conciliadores dos centros de resolução de disputas.

26Em setembro de 2011, o CNJ19 organizou curso de formação de instrutores em conciliação e mediação, com duplo objetivo: formar servidores do judiciário como instrutores em conciliação e mediação a fim de intensificar a disseminação e a padronização dessas técnicas nos tribunais brasileiros, e dotá-los de experiência em docência para que possam lecionar nos tribunais os cursos de formação e capacitação. Sob a alegação de que “essa medida poupará, inclusive, recursos dos tribunais que não terão que contratar serviços externos para capacitação, acionando os próprios servidores para ensinar o público interno e externo,”20 a formação e a capacitação dos futuros mediadores e conciliadores do juízo eram realizadas não por meio de convênio com entidades públicas e privadas, e instituições e universidades de ensino, mas pelos próprios servidores do judiciário, que também atuam nos processos de mediação e de conciliação. Interessante notar que os participantes do curso do CNJ se comprometiam a lecionar ao menos cinco cursos referidos na resolução, em regime de codocência com demais participantes do treinamento, conforme disposto no artigo 7.º do regulamento do curso.21

  • 22 Cf. supra nota 15.

27Ao que parece, a institucionalização da mediação pelo poder judiciário caminha no sentido de desenvolver um processo de solução de litígio, diferente do adversarial, mas à sua semelhança (com prazos, supervisão de juiz, etc.), que exclui importantes características inerentes ao instituto da mediação, como a interdisciplinaridade. Diante disto, podemos nos questionar sobre a possibilidade de uma mediação, nos moldes como vem se apresentando, no âmbito judicial. Em outras palavras: é possível uma mediação feita pelo Estado? Ainda que as considerações abaixo transcritas sejam sobre o instituto da conciliação, as reflexões de Leite são pertinentes à mediação como forma alternativa de resolução de conflito no sentido desenvolvido anteriormente:22

[O] que se quer do Estado nunca é a sua mediação para resolver amigavelmente a questão, ou conciliatoriamente, como é a proposta dos Juizados Especiais. [….] [I]r à Justiça significa briga, oposição e um comportamento sempre antagônico à paz. [….] Igualmente para os serventuários da justiça que, além de participantes da sociedade, estão acostumados à forma padronizada de operar no nosso sistema judicial, a abertura de um processo na justiça comum ou nos juizados também significa uma solução de modo adversarial. Dessa forma, a lei que institui os Juizados Especiais, pretendendo uma alternativa, um esquema conciliatório na administração de conflitos, tem sua aplicabilidade conciliatória inviabilizada a começar pelo caráter opositivo que representa a justiça estatal. A mediação significa acordo entre vontades, resolução sem briga, em paz, quando ela é realizada de forma particular, sem intermediação do Estado, pessoa a pessoa ou com interferência de instâncias informais como amigos, parentes, vizinhos etc. Quando se recorre o Estado – e todas as formas oficiais de administração de conflitos passam pelo Estado –, o modo de resolução é sempre pensado como conflitivo, do qual sairá um vencedor com Direito de obter a reparação do que lhe foi feito erradamente por parte do perdedor. Quando se recorre à justiça, não se pensa em formas conciliatórias, amigáveis e que haverá uma negociação para que seja encontrada uma solução aceitável por todos. O apelo ao Estado significa ir à justiça no sentido de corrigir algo fora da ordem, o que implica sempre a busca de uma solução do tipo vencedor/perdedor. (Leite, 2013: 132 ss.)

28De certa forma, quando o Estado se apropria do instituto da mediação para dirimir conflitos, a partir de uma mediação realizada por serventuários do poder judiciário, mais uma vez chama para si a responsabilidade (e o monopólio) de resolver os conflitos sociais. Não deixa de ser uma forma de controle social e também de manutenção de um poder institucional com pretensão de moldar e organizar o conflito social. A prática da mediação nos centros de mediação judiciais pelos serventuários da justiça nos induz a pensar que a forma pela qual o processo de mediação se efetivará pode não se distanciar muito das práticas e representações tão arraigadas e próprias dos processos judiciais. E, se assim for, estaremos perdendo uma boa oportunidade de dar diferentes tratamentos aos diferentes tipos de conflitos sociais que, de uma maneira ou de outra, desembocam no poder judiciário.

A adequação da mediação nas disputas de família

29Uma característica frequentemente presente nos conflitos de família, que busca soluções por meio de uma decisão judicial, ou seja, quando o conflito já se transformou de fato em um litígio, por meio do ajuizamento de uma ação judicial por uma das partes, diz respeito exatamente ao uso deste instrumento (ação judicial) como um meio de atingir ou prejudicar o outro. Quando percebemos que as partes estão com esse propósito é muito improvável que o juiz consiga resolver o conflito por meio de uma decisão judicial monocrática. Em muitos casos, não se trata de dizer quem tem o direito ou não, pois as partes não estão necessariamente buscando uma solução para o conflito. Como salienta Ferreira (2011: 141), “as pessoas entram em conflito pelas mais diversas razões, e sua dificuldade em cooperar as leva a competir de forma pouco saudável. Elas podem competir tanto por concordar como por discordar a respeito do objeto da disputa”. Duarte (2011: 8) também entende que nos processos de litígio familiar, deparamo-nos com as mais variadas reações do casal. Há os que conseguem acordos baseados em um consenso e outros nos quais uma transformação dos conflitos entre os cônjuges é muito difícil, acarretando consequências significativas para as pessoas envolvidas, como os filhos.

  • 23 Sobre a manutenção do vínculo por meio da litigância, ver Vainer (1999).

30Muitas vezes, em processos judiciais de família, como uma separação conjugal, as partes não estão se valendo da ação para solucionar o conflito, mas para permanecer com o vínculo, ainda que este vínculo se mantenha por meio de uma disputa judicial23. Por outro lado, um processo de separação conjugal pode englobar outras questões (para além da separação de corpos) como a partilha de bens, alimentos, guarda e visita de filhos. Para cada uma destas questões, as partes poderão mobilizar diferentes instrumentos jurídicos, o que equivale a dizer que uma única questão familiar, aparentemente isolada, pode se desdobrar em diversas outras questões e conflitos, que podem ser judicializados por meio de ações. Estamos, portanto, diante de uma situação que pode vir a se transformar em várias outras, dando origem a um processo judicial principal, com diversos processos apensados, o que dificulta o andamento e tratamento do conflito de cada um deles e, com isto, a solução da lide em sua totalidade. Para Ferreira (2011: 116), “a maior dificuldade na solução das causas de família está em que os conflitos emocionais/relacionais entre os litigantes, frequentemente, dão substrato à disputa. Os conflitos emocionais não elaborados da dupla parental tendem a comandar a ação”.

31De acordo com Grunspun (2000: 13), o uso mais difundido da mediação é no divórcio, na custódia e na guarda dos filhos, pois esses assuntos geralmente incluem partilha de bens, obrigações, sustento e cuidados com os filhos. Esse autor sustenta que “nas Varas de Família, a mediação apresenta vantagens frequentes comparando com os litígios, porque facilita a comunicação futura entre as partes, o que é necessário quando o futuro de filhos está em jogo” (2000: 14). Em sua experiência acompanhando os julgamentos sobre guarda dos filhos, ele constatou que para os juízes, o divórcio era uma tragédia que precisa terminar logo, e que a decisão judicial privilegiava os direitos dos adultos sobre os filhos em detrimento dos direitos desses últimos verem suas necessidades atendidas. Em suas palavras:

A Justiça sempre esteve eivada em defender os interesses dos adultos em seus direitos sobre os filhos e não em defender os interesses das crianças em ter um pai e uma mãe. As disputas na Justiça não permitem motivar um ou outro em como ser pais melhores ou mais responsáveis. No julgamento, com qualquer decisão sobre o divórcio, a família não termina – ela muda. Pai e mãe continuam para o resto da vida dos filhos, funcionando bem, funcionando mal ou não funcionando. (Grunspun, 2000: 24)

  • 24 Como título ilustrativo dessa tendência, podemos citar a introdução do instituto da guarda comparti (…)

32Se podemos dizer que as decisões judiciais atuais priorizam o interesse do menor,24 envolvido nos conflitos familiares, também é verdade que hoje em dia as separações conjugais se dão com mais frequência e rapidez. Em decorrência dessas mudanças, surgem novas configurações familiares, como famílias monoparentais e recompostas, que desafiam o ordenamento jurídico no que tange à regulação dessas situações. Trata-se, portanto, de uma área do direito que demanda especial atenção por parte daqueles que, de uma maneira ou de outra, estão envolvidos no processo de resolução de conflitos, como as próprias partes, advogados, juízes e mediadores. O procedimento comum de uma ação judicial não tem a priori flexibilidade nem amplitude que permitam o tratamento de tantas questões subjetivas como as que estão presentes nos conflitos familiares. A formalidade judicial e a pouca participação das partes no processo judicial pode contribuir para o acirramento do conflito. Neste sentido, o processo de mediação pode ser visto como um caminho adequado e promissor para a resolução de conflitos no campo do direito de família. Como ressalta Ferreira:

A mediação, no campo judicial da família, não deve ser vista como panaceia dos tempos modernos nem como solução para todos os problemas da área de família, – até porque nem todos os conflitos são mediáveis, segundo o conceito exposto – mas como uma prática promissora, como mais um meio de a rede social promover apoio aos membros da família em crise. (2011: 153)

33A mediação é um instituto que busca primordialmente o diálogo das partes. A construção do acordo pelas partes envolvidas é uma consequência do processo e não um fim em si. O mediador tem a função de ajudar os mediandos a compreender o conflito e, com isto, desconstruí-lo, facilitando a construção da solução. Neste processo, os mediandos são os protagonistas e responsáveis por encontrar (e criar) uma forma de resolver o conflito. Trata-se de implicar as partes neste processo, devolvendo-lhes a responsabilidade pelo fim da controvérsia. A informalidade própria ao processo de mediação permite uma aproximação das partes em conflito e proporciona um ambiente propício ao diálogo.

34É evidente que a autonomia e a liberdade das partes em um processo de mediação não são irrestritas e ilimitadas. Um processo de mediação não pode terminar com um acordo que desrespeite a lei. As partes não podem dispor sobre direitos indisponíveis, por exemplo. Porém, é inegável que o espaço existente entre o que a lei estabelece e aquilo que o juiz vai decidir é amplo o suficiente para abarcar inúmeras soluções. E neste sentido, nos parece que são justamente as partes conflitantes, com a ajuda de especialistas, as pessoas mais indicadas para apresentar uma solução.

35Ainda que pensemos em um processo judicial mais flexível e exíguo, com menos instrumentos jurídicos (como os recursos judiciais) a serem mobilizados pelas partes, dificultando as artimanhas e manobras processuais para retardar a solução da lide, será sempre um processo mais engessado e menos aberto a soluções outras que não a aplicação da lei ao caso concreto. Em outras palavras, é muito mais difícil pensar que um magistrado possa imaginar e proferir uma decisão mais adequada às necessidades das partes em conflito familiar do que as próprias partes. É interessante destacar que a insatisfação com o tratamento dos conflitos familiares não se restringe às partes envolvidas no conflito, mas abrange também outros profissionais que participam do processo judicial, como os advogados e juízes. Neste sentido, Ferreira afirma que:

Os juízes de Família sentem necessidade de recursos de ação que lhes permitam obter melhores resultados em seu trabalho. Eles têm plena consciência dos esforços que fazem e das limitações que têm, como operadores do Direito, para ajudar as partes a chegar a bom termo na solução de seus conflitos. E preocupam-se, de verdade, com o destino das famílias em litígio. (2011: 158)

36Estamos diante de um cenário no qual os atores sociais demonstram descontentamento com o tratamento judicial dispensado aos conflitos familiares. Se o monopólio dos mecanismos de resolução de conflitos pelo poder judiciário pode nos levar a acreditar que existe uma zona de conforto a ser por nós desfrutada, já que podemos nos eximir de nossa responsabilidade nos conflitos, pois há um outro (juiz) que vai resolver nossos conflitos sociais, esta possível sensação de conforto não se faz presente nas questões familiares. Por envolverem sentimentos (muitos deles desconhecidos pelos próprios atores), os conflitos familiares demandam cuidados que ultrapassam o conhecimento exigido dos operadores jurídicos, abrangendo outros saberes como a psicologia e a psicanálise. E é justamente neste ponto que uma mudança de mentalidade se faz necessária.

37A interdisciplinaridade é fundamental para o tratamento adequado dos conflitos familiares. Embora no processo judicial exista sempre a possibilidade de se buscar conhecimentos outros, que não o jurídico, por meio de pareceres técnicos de especialistas, trata-se de uma compartimentalização de saberes, na maioria das vezes presentes nos autos do processo pela forma escrita, que se prestam mais a fundamentar a decisão judicial do que auxiliar na efetiva solução da lide. Trata-se, portanto, de permitir que operadores de diferentes áreas possam efetivamente trabalhar em conjunto, e não paralelamente. Embora não seja a única via possível, mas apenas mais uma de tantas outras, a mediação permite a atuação de dois profissionais de diferentes áreas do conhecimento, complementando seus saberes, em um mesmo processo. A mediação familiar tem muito a contribuir para o tratamento de conflitos e pode ser um efetivo instrumento para sua prevenção, com redução de demandas judiciais. Tartuce (2008: 280) relata que a experiência em mediação familiar no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina demonstrou que algumas pessoas saíram do setor de mediação com a intenção de repensar sua vida conjugal, evitando ações prematuras.

Conclusão

  • 25 No Rio de Janeiro, por exemplo, a Resolução n.º 19 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janei (…)

38A mediação no campo do direito e no âmbito do poder judiciário hoje já é uma realidade. A literatura sobre o tema é vasta e sua regulação, apesar de não ser oriunda de uma única lei, já caminha a passos largos para uma sistematização e padronização no tocante à prática da mediação. A Resolução CNJ n.º 125/2010, os provimentos dos tribunais de justiça25 e as disposições do Anteprojeto do Código de Processo Civil demonstram claramente a preocupação e intenção de institucionalizar e regular a prática da mediação no campo do direito.

39A mediação tem a seu favor o caráter inovador de toda medida ainda não implantada e desenvolvida em determinado campo. Muitas são as expectativas que a cercam no tocante a sua eficiência na resolução de conflitos que o poder judiciário não consegue resolver. Assim foi com a institucionalização da conciliação pela Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n.º 9.099/1995). O instituto da conciliação não trouxe para a realidade judicial brasileira as promessas anunciadas de se constituir em um instrumento alternativo de resolução de conflitos, capaz de auxiliar as partes a construir um acordo. A conciliação, no âmbito judicial, acabou por reproduzir padrões próprios do modelo adjudicatório, exercendo o conciliador a função (e postura) de um juiz que impõe uma decisão, e pode encerrar o processo, mas não trata o conflito. Nesse sentido, as diferenças existentes entre o instituto da conciliação e da mediação tornam-se relevantes e devem ser respeitadas. Se ambos forem tratados como sinônimos, perdemos a oportunidade que a mediação traz de dar uma nova (e mais ampla) abordagem ao conflito, sobretudo, se decorrente das relações duradouras, como as de família.

40O entusiasmo do poder judiciário pela mediação, ao que parece, decorre principalmente do fato de a mediação se prestar a ser um meio de pacificação social capaz de reduzir e evitar a judicialização dos conflitos. No entanto, a discussão e implantação das práticas da mediação poderia se ater menos à criação de um novo “processo judicial” de resolução de conflitos, e se voltar para a possibilidade de a mediação dar uma abordagem inovadora (ao menos no campo do direito) ao conflito, como exemplificamos aqui no caso dos conflitos familiares. A redução das demandas judiciais deve ser antes um resultado decorrente dos diferentes tratamentos dado ao conflito do que um objetivo em si mesmo. No âmbito da reforma do poder judiciário, observamos que os meios alternativos de solução de conflitos deixam de ser uma alternativa à forma judicial de solução de conflitos para se tornar um instrumento para reduzir e pôr fim às ações judiciais. Assim, os meios alternativos ganham uma função meramente instrumental e deixam de lado a possibilidade de dar outro enfoque ao conflito e, quem sabe, melhor atender às demandas sociais. Neste sentido, afirmam Nobre e Rodriguez:

O tema dos mecanismos alternativos de solução de conflitos tem sido discutido no contexto de reforma do Poder Judiciário e não como uma real alternativa a ele. Tais mecanismos têm sido mantidos sob o controle desse poder e tratados, na maior parte das vezes, como instrumentos destinados a desafogar o Judiciário. Reduzir os meios alternativos a essa função meramente instrumental significa deixar de lado sua capacidade de enquadrar os conflitos de outra maneira e promover a mediação entre sociedade e Estado de acordo com outra gramática. Uma outra gramática que pode bem recebe o nome de direito, desde que deixe de pensar o jurídico como sinônimo de ‘judicial’ e se deixe de pensar os avanços constitucionais apenas como ampliação do acesso à justiça visto como sinônimo de “poder judiciário”. (2011: 14)

41O desafio da institucionalização da mediação parece, então, estar menos na criação de normas legais reguladoras e garantidoras do devido processo legal da mediação no âmbito do poder judiciário e mais na possibilidade de este poder se apropriar dela enquanto forma de resolução de conflitos alternativa à forma judicial. Neste sentido, uma análise da mediação e sua aplicação no âmbito do poder judiciário, a partir do discurso institucional e da implantação da prática nos Centros de Mediação dos Tribunais de Justiça, poderá indicar que, sob o pano de fundo da busca por formas mais adequadas de solução de conflitos, o que se busca é a manutenção de uma ordem social a partir do controle dos conflitos sociais. Apesar de o discurso do poder judiciário brasileiro mobilizar a prática da mediação como uma forma mais adequada de tratar determinados conflitos, como os familiares, pois permite uma abordagem do conflito alternativa à judicial (que é adversarial, com uma relação ganha e perde), atribuindo uma conotação positiva (que é colaborativa, com uma relação ganha-ganha, que traz benefícios mútuos), na verdade a busca pela paz social pressupõe uma conotação negativa do conflito. A busca pela pacificação social traz intrinsecamente a ideia de que os conflitos sociais não são desejáveis e devem ser resolvidos, seja por meio da mediação, seja por meio da ação judicial. Importante ressaltar que não se trata de substituir um determinado modo de solucionar o conflito (adjudicatório) por outro (não adjudicatório), mas permitir e experimentar a existência de dois caminhos diferentes, com lógicas, gramáticas e funcionamentos próprios, em um mesmo campo.

Referência eletrônica

Cristiana Vianna Veras e Roberto Fragale Filho, «A judicialização da mediação no poder judiciário brasileiro: mais do mesmo nas disputas familiares?», e-cadernos CES [Online], 20 | 2013, posto online no dia 01 dezembro 2013, consultado o 11 maio 2022. URL: http://journals.openedition.org/eces/1717; DOI: https://doi.org/10.4000/eces.1717

fonte: OpenEdition Journals