Como o Estudo de Filosofia Enriquece a prática da Mediação

por Renato Boson

A mediação e o ato de mediar são atividades predominantemente humanas, no sentido de que as emoções e sentimentos humanos são ali conversados, apresentados, vividos, em busca de seu entendimento e, em alguns casos, superação para que questões mais materiais possam ser colocadas em pauta e negociadas. É tomando essa perspectiva que se reconhecem os conhecimentos humanos como enriquecedores da prática do mediador – aqui incluídos a título de exemplo a psicologia, negociação, o direito. Sem dúvida saber acerca dessas áreas dá maior segurança ao mediador quando lida com as questões que os mediandos trazem à mesa.

Mas e a filosofia?

Uma ciência humana tão antiga, tão complexa aos olhos de muitos, com sua utilidade questionada por outros. Seria esse conhecimento relevante à prática do mediador? Nada melhor do que estudar os próprios filósofos e suas ideias de forma a tentar responder esta questão. Este artigo apresenta-se como um ensaio no qual, em primeiro momento, serão apresentados filósofos antigos, medievais, modernos e contemporâneos acompanhados de suas ideias relevantes ao estudo, as quais serão analisadas sob o crivo da pertinência à atividade do mediador traçando-se os paralelos, ainda que superficiais, entre a filosofia e a mediação.

Filosofia Antiga

A filosofia antiga contou com grandes nomes que até hoje são estudados e amplamente conhecidos, aqui fala-se de Sócrates, Platão e Aristóteles como o tripé em que se firma o conhecimento desta era a filosofia. Neste contexto, serão estes filósofos os estudados neste capítulo.

Sócrates

Sócrates é conhecido apenas pelos textos de Platão, sendo que suas ideias dificilmente se destacam entre si, já que se conhece o primeiro pelos escritos do segundo. Ainda assim, existem conhecimentos que são tipicamente atribuídos a Sócrates, como a frase “Conhece-te a ti mesmo” e “Sei que nada sei” que, por elas mesmas, já apresentam profundidade de pensamento, como poucas palavras que escondem vasta informação e conhecimento.

“Conhece-te a ti mesmo” demonstra-se como uma atividade relevante para o mediador no que tange à ética da profissão – assunto o qual será aprofundado posteriormente. No que tange a esta frase, ressalta-se que o autoconhecimento é norteador do aperfeiçoamento de si mesmo como pessoa e como profissional, extremamente relevante na hora de avaliar o resultado da mediação que é difícil de se quantificar tendo em vista que objetivo final não necessariamente consubstancia-se em um acordo assinado. Sabiamente colocado por Tânia Almeida ao citar Levy-Strauss “numa ciência, onde o observador é da mesma natureza do objeto, o observador, ele mesmo, é uma parte de sua observação” (DE ALMEIDA/2017).

Ainda neste sentido, inclui-se a segunda frase proposta para análise, “Sei que nada sei” representa o desprender das próprias perspectivas, dos próprios julgamentos. Saber que nada se sabe deve ser entendido como a abertura para re- aprender – atividade que implica em deixar de lado aquilo que se toma como verdadeiro em prol de um novo paradigma, ainda que momentâneo. Assim, pautar-se nesse conhecimento permite ao mediador aceitar os conceitos dos mediandos como bússola para o andamento das sessões de mediação, podendo abster-se de afetar as discussões e a liderança com seus próprios desejos, retirando o protagonismo dos mediandos ao fazê-lo. Conforme André Gomma:

“Ainda que o mediador faça um juízo acerca da disputa em questão (no sentido de como esta pode ser mais bem conduzida para um solução), deve-se ter em mente que o papel do mediador não é julgar, e sim ajudar as partes para que elas mesmas cheguem a uma solução. Assim, é interessante que sejam evitadas intervenções que direcionem as partes ou que as influenciem a agir de determinada forma.” (AZEVEDO/2018).

Desta posta, conhecer a si mesmo e saber que nada se sabe caminham de mão dadas para oportunizar ao mediador que se esvazie de suas próprias perspectivas e expectativas, aproximando-se da imparcialidade do mediador – princípio da mediação entendido como a falta de tendência do mediador frente a um ou outro dos mediandos em sua mesa – no sentido de que não há preferência pela perspectiva de um que possa se assemelhar a do mediador, ou desgosto pela visão do outro que se afasta daquela que o mediador leva em sua vida privada.

A prática do princípio acima é algo difícil e alvo de muita discussão sobre a própria existência dessa imparcialidade, ou da neutralidade, no entanto, certo é que o entendimento da necessidade de se conhecer melhor, e de que a verdade que se tem para si nem sempre é a mesma que outro pode ter, colocam o mediador em posição de humildade para exercê-lo.

Platão

Em seu aclamado livro “A República”, Platão apresenta diversas ideias e ponderações em forma de diálogos cujo personagem principal é seu mestre e professor Sócrates, que conversa com diversos contracenantes em capítulos intitulados numericamente como Livros I ao X. O que foi discutido naquele livro até hoje encontra espaço em discussões políticas, mostrando quão atual e humana foi a contribuição deste filósofo.

No que se refere à mediação e cerceando o estudo apenas a uma faceta do conhecimento apresentado pelo filósofo, de grande valia apresenta-se a tripartição da alma apresentada no livro IV. Independente da crença do mediador, seja ela na alma indivisível, seja ela na inexistência da alma, o que se apresenta é o convite para educar-se acerca das vontades que acompanham essa vivência, e à observação desses mesmos a fim de aprimorar-se como profissional.

A alma, portanto e segundo Platão n’A Republica, é dividida em três aspectos, três faces de si mesma – a face da Razão, a face do Ânimo e a face do Apetite. A Razão, como comum para os filósofos desta época, é tida como aquela que se alimenta do conhecimento, do Logos, que se sacia através do amor à verdade e ao conhecimento da mesma, é a fome pelo conhecimento. Já a face do Ânimo, apresentada como aquela relacionada às emoções, é a responsável pelas mudanças temperamentais. Enfim, a face do Apetite é aquela que deseja os prazeres carnais, a alimentação, o sono, a sede, é visivelmente contrária à Razão por não ter vontade de conhecer, e sim de agir, de fazer.

Necessário ressaltar que cada faceta da alma, em Platão, tem o poder de comandar o corpo e mente da pessoa, basta alimentá-la mais que as outras. Um ator deve lidar com emoções com frequência e, por isso, tem em si a face do ânimo exacerbada, o influenciando a ter reações emocionais fortes e súbitas, mesmo quando não lhe é de todo vantajoso, mas também lhe permite entender o impacto que sua atuação tem no público e lhe permite sentir como seu personagem sente, refinando sua arte. Da mesma forma, um filósofo doma suas emoções e seus apetites por estar frequentemente alimentando a Razão, e uma pessoa que se dispõe aos vícios da alimentação e do sexo tendem a ceder a estes desejos com maior frequência.

Aqui se torna relevante a análise do papel do mediador quanto às três facetas apresentadas, qual delas seria mais relevante ao mediador? Em primeiro momento, a Razão parece ser a correta de se alimentar quando se faz da mediação a sua atividade. No entanto, há grande valia também de se alimentar o Ânimo. Uma face não anula a outra e o conhecimento teórico e prático tem muita valia, mas caso não haja no mediador a capacidade de sentir o que está ocorrendo na mesa, terá dificuldades na aplicação de técnicas. Os desejos carnais, o Apetite, todos têm seu lugar e seu momento na vida, mas não parece sensato que o mediador dê espaço aos seus durante uma mediação, afinal, trata-se de uma face que faz e age, sem explicação ou motivo racional – flertar com uma esposa que está se divorciando, ou ficar se alimentando durante uma sessão, estas são práticas nada profissionais e até mesmo antiéticas.

A alimentação é a exposição que uma pessoa se permite ter frente ao que é racional, animoso ou apetitoso, e isto necessariamente implica na vida fora da mediação, no dia-a-dia e no que se deseja e, de fato, faz.

Para o mediador, a Razão pode ser alimentada através da leitura de artigos ou livros, ou na participação de cursos presenciais ou à distância, o Ânimo alimenta-se através de um bom filme que é assistido, ou da poesia sob a qual debruça seu leitos, ou até mesmo através da meditação. O Apetite não tem espaço na atuação do mediador, portanto no que tange ao mesmo, caberia à razão do mediador domá-lo e mantê-lo em observação enquanto decorre as mediações.

Trata-se de um convite, portanto, ao cuidado frente ao que se expõe, feito com a intenção de se avaliar o quanto pode a rotina atrapalhar a prática da mediação, dificultar a atuação – ou o contrário, fazer do mediador ainda mais afiado e atento ao que lhe concerne profissionalmente.

Percebe-se portanto que conhecer dos seus próprios desejos e de suas necessidades, independente da forma acadêmica que este estudo tome, seja as faces da alma em Platão, seja nas formas modernas da psicologia, são de grande valia e a contribuição de Platão mostra-se atualmente inclusive neste aspecto, no que tange o trabalho do mediador.

Aristóteles

Ética a Nicômaco ou Ética a Meu Filho Nicômaco é o livro Aristotélico que trata da ética, apresentando pensamentos acerca do que é justo, do que é o bem, quais virtudes se deve almejar, dentro de outras questões que permeiam o campo da ética.

No que se refere a este livro e à atividade do mediador, deve-se adentrar aos questionamentos referentes ao como se deve agir. Antes disso, no entanto, é preciso entender o que é a justa medida – para o filósofo trata-se daquilo que existe entre dois vícios, que se apresentam como dois extremos acerca de um assunto. Em se tratar desses extremos, haveria um quê de detestável a ambos, seja pelo excesso seja pela falta, e assim deveriam ser evitados, mas a justa medida – por não ser extrema pode cultivar o elogio. Para fins de esclarecimento, Aristóteles apresentou o exemplo da coragem, uma justa medida que se apresenta entre a temeridade (tida como a ausência do medo, manifesta por aquele que tem pouco apreço à vida e se joga em situações fatais sem necessidade) e a covardia (tamanho medo que leva à inanição frente ao que é valioso para a pessoa).

Portanto, para o filósofo, a forma que se deve agir é aquela que lhe permite estar na justa medida. Assim, a pessoa se tornará recipiente para as virtudes morais (retidão moral, o filósofo se abstém de propor sistemas morais específicos) e intelectuais (a capacidade de aprender) e, no seu dia-a-dia, a felicidade lhe acompanhará.

O dever agir apresenta-se como a capacidade de agir longe dos vícios, revelando-se de grande importância para a atividade do mediador – afinal, muito do que ocorre em uma mesa de mediação se refere ao exemplo dado pelo mediador. Qual mediando escutará o outro, se o próprio mediador não o faz? Qual falará sem usar palavras de baixo calão, se o próprio mediador recorre às mesmas?

Quando o mediador propõe-se a interferir na negociação dos mediandos usando uma técnica, seja ela tradicional ou não, a capacidade de verificar se está o fazendo pautado na justa medida – isto é, na virtude – pode lhe tirar a dúvida acerca da pertinência de sua ação naquele momento. Talvez note que está sendo arrogante ao achar que aquela proposição resolveria o problema imediatamente, pensamento que lhe traria prudência. Talvez note que não há, de fato, um impacto positivo no uso daquela técnica, e isto lhe faça recuar, evitando dificultar o andamento da sessão. Vale dizer também que o mediador que se encontra na felicidade, poderá atuar dando o exemplo da calma, da sensatez e da leveza aos mediandos, facilitando o andar da sessão.

Por tudo, conclui-se que estudar as virtudes aristotélicas trarão ao mediador maior capacidade de escolha do momento e do teor de suas possíveis interferências à mesa, além de lhe permitir estar em um estado de espírito leve e calmo, facilitando ainda mais sua atuação.

Filosofia na Idade Média

A Idade Média, chamada também Idade das Trevas, na realidade teve grande contribuição para a filosofia, havendo alguns de seus nomes ganhado grande atenção pelos estudiosos, principalmente teólogos, e as contribuições desta era ajudado muito na formação de noções atuais de ética e bondade, o que se deu pela influência desses filósofos na tradição cristã. Será apresentada a ideia de Tomás de Aquino e as virtudes para ele, que são de valia à atividade do mediador.

São Tomás de Aquino

O filósofo cristão do século XII escreveu a Suma Teológica, um livro robusto com diversos conhecimentos e ponderações acerca do divino, da humanidade, e várias questões atinentes a esses temas principais. Relevante aos estudos do mediador são as virtudes para Tomás de Aquino, as quais serão tratadas a seguir.

Para o filósofo virtudes são hábitos bons, que levam ao aperfeiçoamento da pessoa que os têm. Vale dizer que sua perspectiva é eclesiástica, mas que as práticas mencionadas por ele, independente da crença específica do estudioso, apresentam rigidez e oferecem aprimoramento ao mediador atuante. Existem quatro virtudes que são principais, cardeais, para uma pessoa. São elas a Prudência, a Justiça, a Temperança e a Fortaleza.

“assim como nos dispomos a proceder retamente em relação aos princípios universais, pelo intelecto naturalmente, ou pela ciência habitual, assim também, para nos dispormos bem em relação aos princípios particulares de nossas ações, que são os fins, é preciso que sejamos aperfeiçoados por certos hábitos que, de alguma forma nos tornam conatural o correto julgamento do fim. E isso se faz pela virtude moral, porque o virtuoso julga retamente sobre o fim da virtude. Logo, a razão reta do agir, ou seja, a Prudência, exige que o homem tenha a virtude moral”. (AQUINO/2004)

Separando as virtudes em intelectuais e morais, certo é que para o autor independente do título a que se subdividem, elas permitem à pessoa que as possui o aprimoramento pessoal. As intelectuais o fazem de forma a dar acuidade ao intelecto, na capacidade especulativa e na sua transição para a praticidade, enquanto as morais aperfeiçoam a atuação da pessoa, tornando-a propensa a realizar ações que se adequem ao que é considerado moral. Cabe ressaltar que virtudes morais, para o filósofo, podem ser percebidas no dia-a-dia, na afetividade – elas ficam claras quando se percebe o que é desejável, o que é rejeitável, o que motiva, o que entristece, etc.

No que se refere à Prudência, trata-se de uma virtude tanto moral quanto intelectual, que pode ser entendida como a capacidade de escolher bem, trazendo retidão ao agir. Para o autor, tamanha a importância desta virtude, que sua ausência torna impossível qualquer outra virtude moral, é necessário escolher e agir para que algo possa ser moralmente virtuoso, e a ausência da prudência implica que não houve escolha virtuosa.

De fato, ser prudente em uma mesa de mediação que se auxilia à resolução de um problema ou à negociação, seja qual for, é de suma importância. Afinal, agir de forma imprudente pode não só fazer do mediador menos confiável, mas também da própria mediação ineficaz. Exercitar a prudência, por ser em parte virtude intelectual, reside no estudo preparatório para a atuação consciente e, por ser em parte virtude moral, está na percepção que se afia pela própria prática e conhecimento que se vem a ter daqueles à mesa.

A Justiça, para o filósofo, é apresentada com muita semelhança ao que Aristóteles tomou como justiça no passado, isto é: Dar à pessoa o que é dela. É preciso chamar atenção para que a vontade está de mãos dadas com a justiça, vez que na concepção do filósofo é impossível agir de forma justa se o faz por acidente, se não é intencional.

Por mais que haja definição de justiça nesta filosofia, a sua transposição ao meio prático permanece complicada, afinal, não cabe ao mediador questionar se o divórcio é ou não de um dos mediandos (neste ponto, cabe Prudência). Ou se a continuidade do contrato é ou não dos contratantes. Nesse aspecto, há de se afirmar que a busca da justiça na forma convencional – jurídica – da palavra foge à ação do mediador, devendo ele respeitar o direito, mas não necessariamente buscar atendê-lo em detrimento dos mediandos.

Ora, aos mediandos cabe serem justos ou não e, nessa perspectiva, cabe ao mediador convidá-los a indagar sobre a justiça de suas decisões ou propostas. Depara-se com o princípio da decisão informada, depara-se com a eleição de critérios objetivos quando da escolha das propostas. Neste sentido, a virtude da justiça, para o mediador, é justamente ausentar-se da decisão, mas convidar aos que decidem para que o façam de forma justa.

Temperança, por sua vez, apresenta-se como uma virtude que faz de nós senhores de nossos prazeres, sendo aquele que não tem temperança o escravo do que deseja. Se torna essencial por ser moderadora dos atos, das decisões e até mesmo das próprias virtudes, possibilitando a manutenção das mesmas. Vale ressaltar que os prazeres carnais estão aqui incluídos, sendo moderados por esta virtude – como já houve menção acerca da necessidade de se estar atento a estes prazeres, não haverá aprofundamento neste momento.

A capacidade de moderar os próprios prazeres se relaciona com diversas facetas da atuação do mediador. Exemplifica-se: a pontualidade no início da sessão; a isonomia como igualdade de oportunidades; a capacidade de terminar uma sessão que corria bem em prol de maior conhecimento acerca de assuntos novos que apareceram. Todos esses momentos podem, em primeira vista, estar em desacordo com a vontade própria do mediador e o exercício da temperança lhe permite abdicar do que lhe parece sensato pelo que o é para os mediandos, os protagonistas.

Por fim, deve-se falar da Fortaleza, também chamada Coragem. Esta pode ser comparada, segundo o autor, com a força física de uma pessoa. A força física permite que uma pessoa vença obstáculos que a vida coloca em seu caminho, sejam eles a necessidade de se exercitar, vencer uma maratona, ou simplesmente empurrar o carro para fora da rodovia, é com a Fortaleza que se vencem os obstáculos de natureza imaterial que a vida coloca em seu caminho, desde a preguiça, à tristeza e inquietação, mas principalmente a inevitabilidade da morte.

No que se refere à atuação do mediador, a Fortaleza de fato possui um papel especial – afinal, a antecipação de uma sessão importante pode torturar o mediador, pode desanimá-lo, pode inclusive atrapalhar sua atuação no momento. Além disso, a insegurança da realização da primeira mediação, após sua formação, pode aleijar um outrora exímio estudante. Além disso, guarda significância fora da mesa de mediação, frente aos problemas particulares de cada mediador, seja na família, seja no relacionamento. Assim sendo, a Temperança permite resistência à dor, podendo seu detentor, usando de prudência, decidir prostrar-se como se nem dor sentisse, evitando afetar a mesa com suas tendências – ou, sabendo da profundeza de seu momento difícil, optar pelo desmarcar de uma sessão com a certeza de que age em benefício das negociações.

Prudência para saber quando agir e como agir, Justiça para fornecer aos próprios mediandos o convite de julgar, Temperança para não tender aos excessos e Fortaleza para agir frente ao que traz medo e perturbação. As quatro virtudes mostram-se eficazes no aprimoramento profissional do mediador.

Filosofia Moderna

A filosofia moderna conta com diversos pensadores de grande relevância para os estudos deste artigo, dentre eles Sigmund Freud, Arthur Shopenhauer e Soren Kierkegaard. No entanto, as ideias de Friedrich Niezstche de crítica aos valores parece adequar-se à proposta de enriquecer a prática do mediador e são a seguir apresentadas.

Friedrich Nietzsche

Conhecido como o filósofo do martelo por suas duras críticas à filosofia que se manifestaram inclusive na forma em que escreveu seus livros, abdicando da lógica e complexidade racional em favor dos aforismas quase poéticos, Nietzsche ganhou grande visibilidade pública em razão de sua eloquência e genialidade. Se tornou o filósofo do martelo por mais razões do que a mera crítica ao método filosófico ou à teologia, mas sim pela crítica aos valores da sociedade moderna e sua pertinência.

A chamada Transvalorização de Todos os Valores é o nome dado ao que Nietzsche faz acerca das várias doutrinas que critica, aparecendo principalmente em O Anticristo e Crepúsculo dos Ídolos, livros do filósofo. Para o autor, valores de declínio ganharam espaço em detrimento daqueles de crescimento, culpa a metafísica dualista (aquela que propõe a existência de dois mundos, podendo ser encontrada desde os gregos antigos em Platão, até a atualidade na forma de religiões) por enaltecer à adoração aquilo que é negativo à vida, esses valores que culminaram na religião não foram revistos em sua pertinência para a sociedade.

Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade. Nada senão causas imaginárias (“Deus”, “alma”, “espírito”(..)); nada senão efeitos imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”(…)). Um comércio entre seres imaginários (…); uma ciência natural imaginária (antropocêntrica, total ausência do conceito de causas naturais), uma psicologia imaginaria (apenas mal- entendidos sobre si, interpretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis (…) com ajuda da linguagem de sinais da idiossincrasia moral-religiosa – “arrependimento”, “remorso”, “tentação do Demônio”, “presença de Deus”); uma teleologia imaginaria (“o reino de Deus”, “o Juízo Final”, “a vida eterna”). (…) todo esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural ( – a realidade! -). (NIETZSCHE/2007).

Nietzsche bate seu martelo, portanto, propondo-se a revisitar valores e transvalorá-los, de forma a dar-lhes nova interpretação e julgá-los dignos ou não de existência ou adoração.

Define-se: Transvalorar consiste em repensar ideologias, políticas, modelos sociais ou culturais, passando-os por um crivo crítico que faça-os adquirir novos valores – maiores ou menores que os anteriores. Consiste em criticar de forma a adequar os valores, admitindo que mesmo aqueles que se parecem mais valorosos são vítimas do devir do mundo e, tal qual os demais, deverão passar por mudanças – irrisórias ou profundas -, extinguindo-os, desvalorizando-os ou reformulando-os. Essa crítica pauta-se pela realidade, pelo mundo real, que pode ser entendido como o empírico – o experimentável aos sentidos. Por meio dele, o homem não é superior aos demais animais, não se deve pautar a vida atual pelo favorecimento de uma vida futura – prometida como eterna.

Mas no que isso ajuda a prática do mediador?

A capacidade de transvalorizar valores é de grande valia à atividade do mediador, mas deve ser tomada com suas devidas mudanças perante o contexto dessa atividade. Não há necessidade de criticar a moral cristã, ou os valores reativos quando se senta à mesa de mediação para trabalhar. No entanto, há grande pertinência na crítica aos próprios valores do mediador – ao ser mediador, é preciso esvaziar-se para não julgar ou impor, mas apenas facilitar a conversa e a negociação e, neste ponto, perceber que os valores pessoais são incabíveis pode fazer toda a diferença quando o assunto é ser neutro ou imparcial.

Ser capaz de se moldar às crenças e valores trazidos à mesa pelo outro pode ser o maior atributo de um mediador para alcançar a imparcialidade. Esse atributo permite a abdicação do confronto ideológico, permite a fluidez ininterrupta dos princípios e convicções entre mediandos e mediador, permite que o mediador abstenha-se de impor, de propor, e molde-se de forma a encaixar-se no tipo de mediação que ocorre à sua frente, sem tomar partido ou preferir algum tipo de percepção ou desfecho.

De fato, um mediador que seja capaz de transvalorizar seus próprios valores, mesa a mesa, poderá ver-se mais próximo da imparcialidade, mais humilde frente ao que entende correto, mais permissivo às propostas dos participantes e mais compreensivo frente às pautas subjetivas presentes.

Filosofia Contemporânea

Alguns temas apresentam-se de extrema relevância para a atividade do mediador no que tange a Filosofia Contemporânea, estes são a Filosofia da Linguagem e a Ética. Serão apresentados dois filósofos que tratam respectivamente destes temas: Ludwig Wittgenstein e Emmanuel Levinas.

Ludwig Wittgenstein

O filósofo da linguagem investigava as condições da linguagem usando da lógica como sua aliada. Seus estudos levaram à escrita do Tractatus Logico-Philosophicus e, posteriormente ao livro Investigações Filosóficas. No primeiro, buscou a essência da linguagem, discutindo como proposições podem exprimir a realidade, suas nuances acerca de serem verdadeiras ou falsas, esbarrando nas que se referem a questões imateriais e sua relação com a verdade no ponto de vista lógico.

No segundo, diz que a busca pela essência da linguagem é fadada ao fracasso, pois a mesma não existe, e propõe-se a explicar a mesma por essa nova perspectiva, entendendo a linguagem como uma variedade de formas de linguagem que se renovam e se alteram sem seguir uma regra essencial..

O filósofo disse: “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” (WITTGENSTEIN, 2018), isto pois tinha para si que a finalidade da linguagem é descrever o mundo, a realidade, sendo que a compreensão do mundo passa necessariamente pela descrição do mesmo. Neste sentido, uma frase como “A árvore é antiga” guarda relação com a própria árvore da mesma forma que uma maquete de um edifício guarda com o próprio edifício. Assim sendo, usamos de um símbolo (palavra) para entendermos a realidade, e o nosso conhecimento sobre a realidade se dá pelo uso desses símbolos em proposições que façam sentido – são verdadeiras.

A complexidade da filosofia da linguagem é evidente, mas o ponto crucial deste pensamento no que se refere à utilidade do mesmo para o mediador está e no quanto a linguagem dos mediandos formam a sua compreensão do mundo em que vivem. Isto é facilmente exemplificado: Tratando-se de uma pessoa que cita Wittgenstein quando justifica não ter entendido o que outra disse à mesa, sabe-se que esta pessoa teve acesso à filosofia e que, em seu mundo, a linguagem recebe atenção. Outra pessoa que usa palavras simples, corriqueiras e gírias frequentes evidenciam alguém que despojado no que se refere ao cuidado com a linguagem.

Em relação ao segundo livro do autor, os jogos de linguagem tornam-se predominante foco na tentativa de entender a linguagem. Ele abandonou a perspectiva de essência da linguagem e começou a ver a mesma como um amontoado de jogos de linguagem que formam comunicações eficazes independente de ser condizente com a realidade.

Assim, seu impecável exemplo da lajota, em que um construtor civil grita a seu colega “lajota!” simplificado a seguir: nessa simples palavra gritada, o colega entende que o trabalho do primeiro com a lajota anterior terminou, que o primeiro encontra-se preparado para fazer o trabalho novamente com outra lajota, e que está pedindo ao segundo que lhe dê a lajota. Como uma simples palavra expressa todas essas questões? Por se tratar de um jogo de linguagem jogado entre os construtores. Nuances sutis permeiam os jogos de linguagem e permitem até mesmo que o transeunte entenda o que significou aquele grito, se atento.

Com certeza ter acuidade para captar os jogos de linguagem a mesa são de grande valia ao mediador. Uma palavra trocada entre o dois amigos pode significar nada, enquanto se trocada entre casais em divórcio ou contratantes em contenda podem mudar os rumos das negociações. Saber quais palavras evitar, quais palavras podem ser faladas, ou mesmo perceber que uma palavra outrora comum agride um dos mediandos é matéria prima para o trabalho de facilitar a comunicação.

“Os mediadores, por meio das informações, conseguem ter uma visão geral dos fatos e, ao mesmo tempo, captar já algumas questões e interesses envolvidos.” (AZEVEDO/2018).

Esses detalhes referentes à linguagem permitem ao mediador ter acesso a informações que não são ditas diretamente, mas se escondem nas entrelinhas do que é dito. No que se refere à reunião de informações, pode ser muito relevante ter esta atenção.

Conhecer a linguagem do outro permite a compreensão maior do que é dito, pois certas pessoas não usam palavras específicas se não houver um peso na realidade que lhe acometeu, enquanto outras usam as mesmas palavras de forma leviana – isso gera uma visão mais clara do que são posições e interesses para quem fala, podendo o mediador ficar cada vez mais eficaz nessa percepção na medida em que decorre a mediação e as sessões. Soma-se a estes ganhos a possibilidade de gerar rapport, fazendo quem fala sentir-se ouvido e compreendido quando se usa a mesma palavra que ele usou quando descreveu um acontecimento – obviamente deve haver cuidado para não ferir a imparcialidade ou dizer palavras que acirram a disputa.

Emmanuel Lévinas

Emmanuel Lévinas apresentou uma perspectiva bem singular acerca da ética, não a tomando como uma medida de si, mas sim como uma medida pelo outro. Nesse sentido, a alteridade de Levinas nos dá conta de que antes mesmo da percepção racional do eu no mundo, devo e estou desde sempre e para sempre responsável por aquele que me acolhe, por aquele que me ama, mas também por aquele que me violenta.

Essa ideia de que a percepção de si não se dá pela razão que se auto percebe, mas por permissibilidade dada pela alteridade, pelo outro, traz a ética à posição ilustre na filosofia, se mostrando mais relevante que a metafísica ou outros temas.

A concepção de si, portanto, estaria atrelada em primeira instância à percepção que o outro tem deste primeiro, e essa ideia liga-se à mediação justamente por ambas tratarem da profundeza das relações humanas. Os problemas que são apresentados na mesa de mediação podem ser metaforizados com a morte de uma pessoa ou de uma relação – aquele marido e aquela esposa que deixam de ser; aquela relação comercial que deixa de ser. Nascem para um novo ser, aos olhos de novas pessoas e, por isso, com novos olhos também. Uma experiência que pode muito bem mudar a própria noção de sujeito que os mediandos carregam e nas mãos do mediador está a responsabilidade de facilitar esta mudança e de auxiliar no encontro de solução de ganho mútuo.

Ter em vista o impacto que uma mediação pode ter na vida das pessoas é o que pode-se depreender da Ética da Alteridade de Levinas, nesta análise primária. Impacto este que permeia a relação entre duas pessoas que nunca mais se verão, que estão terminando um legado, que estão deixando de ser e se jogando ao que quer que possam vir a ser. E além disto, esta filosofia chama atenção para como o próprio mediador pode afetar os mediandos no que se refere às suas noções de sujeitos – seja por um olhar ou pela forma respeitosa de tratamento, pode- se convidar aos participantes que sejam o que melhor ajudaria à chegada em um ponto final agradável, ou, se necessário, menos sofrido.

Conclusão

Os estudos realizados demonstram que diversos pensamentos e conceitos filosóficos guardam relação com a prática da mediação na medida em que chamam atenção para o autoconhecimento, para melhor compreensão dos princípios que norteiam a atividade do mediador. Aprender e compreender noções filosóficas das diversas eram permitem plasticidade mental na hora da atuação do mediador, permitem empatia à mesa, além de trazerem ao mediador a capacidade de localizar informações que outrora estariam ocultas ao olhar desatento.

Estes aspectos de aprimoramento foram percebidos estudando apenas uma ou duas ideias de cada filosofia estudado aqui, o que revela haver muito mais filosofia que podem contribuir à prática do mediador – o que revela que esta matéria está tomada por diversas ideias capazes de aprofundar o entendimento do mediador do seu próprio trabalho, além de haver grande proximidade do que se adquire com o conhecimento de conceitos como a transvalorização de todos os valores ou a ética da alteridade com a prática diária do mediador.

Tendo isso em vista, a conclusão é de que o estudo da filosofia enriquece o mediador como profissional, perpassando o limiares teóricos e entrando diretamente na prática.


fonte: Livro Mediação, a Travessia Através da Palavra