Contribuição da Psicanálise para o Direito

O uso da palavra para refletir, comunicar, compreender e curar conflitos foi a tônica do segundo dia do curso “O processo sob uma ótica de humanização e transformação da Justiça — uso das ferramentas da mediação e negociação”, promoção do Núcleo Regional de Juiz de Fora da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (Ejef).

Com o tema “Direito, Psicanálise e Mediação”, a discussão, que foi transmitida ao vivo pelo YouTube, trouxe para debaterem a psicóloga e mediadora Rita Andréa Guimarães, a advogada e mediadora Maria Cecília Belo e o advogado e psicólogo Fernando Rinco Rocha.

A juíza diretora do foro de Juiz de Fora, Raquel Barbosa, apresentou os participantes, pontuando as exposições com comentários e ponderações. A advogada Ivone Almeida intermediou o diálogo, introduzindo questionamentos e reflexões, numa conversa que se estendeu por quase três horas.

Entre as conclusões, as magistradas ressaltaram o aspecto multidisciplinar da mediação e do Direito de forma geral, o potencial de autoconhecimento, esclarecimento e autonomia que a psicanálise e as metodologias consensuais de solução de conflito permitem, manifestando ardorosa adesão a um paradigma calcado no entendimento mútuo, na escuta e na paz.

Composta de três etapas, a capacitação se encerra na quinta-feira (26/11), com o tema “Aplicabilidade da Mediação no Direito das Famílias”. O evento integra preparação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para a Semana Nacional da Conciliação, que começa na próxima segunda-feira (30/11).

Psicanálise e Judicialização

Rita Guimarães, que é mestre em Psicologia, iniciou perguntando o que vem a ser “humanização” e “justiça” e lembrando que cada um de nós tem um dicionário interno, de caráter subjetivo, que nem sempre coincide com o conceito formal, compartilhado socialmente.

É o caso de “justiça”, que, segundo ela, vem sendo confundido com “Judiciário”, como reflexo da dificuldade de resolver problemas sem a intervenção do Estado. “A palavra — a expressão verbal — é fundamento para cada um de nós, na construção do mundo, mas ao mesmo tempo muitos não se dão ao trabalho de dialogar”, afirma.

Ela explica que o século XX representou a revisão e a desconstrução de valores. Isso alterou as noções de racionalidade, hierarquia, família, direitos e deveres, gerando uma sensação de desorientação e abandono. Ao mesmo tempo, fenômenos como a tecnologia e o consumismo afetam as relações.

Diante disso, ocorre a desumanização, verificada na deficiência da comunicação ética, no desrespeito à diferença e na falta de escuta. “A humanização se tornou o clamor dos saberes: Direito, Antropologia, Filosofia, Psicologia. Mas persiste a fantasia de encontrar no Judiciário o grande ‘Outro’, que vem responder aos mais variados anseios da população”, avalia.

Com isso, cresce a sobrecarga dos magistrados e equipes e o risco de instrumentalizar ferramentas consensuais como a mediação. Contudo, como a estudiosa enfatizou, a possibilidade não deve ser reduzida à busca de acordos. “Sucesso absoluto ou é mágica ou a escuta está viciada. É preciso acreditar que o outro pode achar seus caminhos, senão o mediador se apropria do procedimento e tende a sentir que é dele o mérito”, provoca.

Teoria e prática

Ex-servidora do TJMG com vasta e diversificada experiência na área administrativa e educacional, graduada em Direito e Pedagogia e mediadora de conflitos pelo Instituto e Câmara de Mediação Aplicada (IMA), Maria Cecília Belo defendeu que o incentivo dos métodos autocompositivos na legislação brasileira não é novo, mas não conseguiu modificar a cultura do litígio, vigente até na formação de profissionais.

“Esse desenvolvimento se inicia em 1934, com a Consolidação das Leis de Trabalho, consta da Constituição Federal de 1988 e culmina na Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, mas tem marcos como a criação dos Juizados Especiais, em 1995, e o novo Código de Processo Civil”, argumenta.

Para ela, seria necessário que esse conhecimento fosse ensinado a crianças, nas escolas, para que se tornasse mais natural no dia a dia, e fosse mais estimulado no âmbito do Judiciário e de instituições como as universidades, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Defensoria Pública, onde a lógica adversarial ainda predomina.

“Isso significa não transferir a responsabilidade sobre os meus problemas para o outro”, diz. A mediadora apresentou dados sobre o total de processos em tramitação — média de um para cada três brasileiros, já que há 71 milhões de feitos para uma população de 211 milhões de habitantes — , a elevada taxa de congestionamento, o tempo de duração das demandas e outros números para mostrar a necessidade de alternativas à judicialização.

“Não é só para desafogar as cortes de justiça, é algo que está positivado na nossa lei como uma via que amplia o acesso à Justiça, mas exige uma mudança de mentalidade e investimento”, pontua, acrescentando que há parâmetros técnicos para praticar a mediação, requisitos para seu emprego, cuidados em sua utilização, já que ela não se aplica a qualquer controvérsia, e prazos.

De acordo com Cecília Belo, não se pode impor esse método, embora ele possa ser proposto até nas questões já judicializadas, mas é preciso recordar que ele facilita acordos executáveis, isto é, soluções que vão atender aos interesses em jogo, sem cair no vazio. “Por isso, não usamos o termo ‘partes’ na mediação, porque a pessoa deve estar inteira naquela atuação”, explica.

Voz e escuta

O advogado e psicólogo Fernando Rinco Rocha, declarando-se apenas um curioso no assunto mediação, afirmou que a tutela jurisdicional é procurada sempre que os envolvidos não conseguem resolver um impasse. Ele discorreu sobre a etimologia de “jurisdição”, tradução de “dizer o direito”, já que o magistrado vai analisar as pretensões supostamente negadas a alguém.

“Como o direito é ‘dito’ através de elementos formalizados no processo — argumentos e provas —, vence quem tem o melhor ‘instrumento de eficácia’, isto é, quem expuser melhor o seu ponto de vista. Assim, haverá a satisfação total ou parcial de um em detrimento do outro. Nem sempre a verdade dos autos alcança o entendimento e a solução amigável.”

Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, e vice-presidente do Conselho de Ética em Juiz de Fora, Rocha conta que, uma vez que o conflito pode ser descrito como uma “pretensão resistida”, a psicanálise pode ser valiosa na superação dele. Trata-se de um processo terapêutico que examina as raízes de aflições, medos e angústias, bem como as motivações profundas por detrás de atitudes, opiniões e crenças.

“As pessoas brigam sem saber por quê. O processo analítico vai atrás da origem do problema, pois o comportamento consciente é influenciado por impulsos inconscientes. A mediação é um procedimento sem protagonismo do Estado-Juiz, pois a resposta nasce das singularidades individuais”, frisa.

Para ele, a mediação dá oportunidade não só para que cada lado diga o seu direito, mas também para que equacione a situação, trazendo queixas e desejos. Assim, a pessoa é reconhecida como competente para a tomada de decisão e capaz de falar e ouvir, ao outro e a si mesmo. Ao facilitador, compete “ouvir o não-dito”: retirar a pulsão destrutiva da interação — agressividade, ressentimentos, acusações — para fazer que o espaço cooperativo seja visto e experimentado.

Assiste ao vídeo completo aqui:

fonte: ASCOM – TJMG