Mediação pela Poesia

por Daniella Velloso Pereira

A ideia de escrever esse artigo sobre MEDIAÇÃO nasceu de uma inspiração. Aprendi o que é Mediação com uma amiga, poeta, psicanalista, mediadora e desbravadora. Aprendo, pelo exemplo – e que privilégio, a mediação na fala, na postura, na vivência e convivência diária. Rita Andréa descreveu, certa feita, a Mediação como sendo o reencontro num tempo de delicadeza, onde as palavras finalmente são ouvidas no silêncio, “num tempo que refaz o que desfez, e bota no corpo outro vez.” (Chico Buarque de Holanda)

Meu desejo, portanto, é dividir com vocês minha experiência como advogada na área de família e a percepção de como a poesia traduz a necessidade de humanizarmos o Direito com a prática da Mediação.

Outro aprendizado, desafio para nós advogados, é ver pessoas no lugar de partes. Exercício diário, que visa o inteiro e não o partido, no lugar do pedaço e partidário.

Passemos, pois, na letra de grandes poetas a viajar pela Mediação, nesse tempo de delicadeza, percebendo-a com o coração. Vou abordar conceitos e princípios, reflexões da forma como os percebo e como os integrei na minha prática. Contarei alguns casos e “causos”, com o devido cuidado de não mencionar qualquer característica que possa identificar os reais personagens.

POSIÇÃO X INTERESSE

Trocando em miúdos Chico Buarque de Holanda

Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim Não me valeu

Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim O resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar As sobras de tudo que chamam lar As sombras de tudo que fomos nós

As marcas de amor nos nossos lençóis As nossas melhores lembranças Aquela esperança de tudo se ajeitar

Pode esquecer

Aquela aliança, você pode empenhar Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar O enorme prazer de me ver chorar Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago Meu peito tão dilacerado

Aliás

Aceite uma ajuda do seu futuro amor Pro aluguel

Devolva o Neruda que você me tomou E nunca leu

Eu bato o portão sem fazer alarde Eu levo a carteira de identidade Uma saideira, muita saudade

E a leve impressão de que já vou tarde

A perda de um amor, na letra do poeta Chico Buarque traz vívidas noções do conflito implícito pelo fim de um relacionamento e nas implicações jurídicas que podem ser alcançadas pela Mediação.

Trocando em miúdos, traduz, de forma belíssima, uma partilha consensual – para o Varão: o disco do Pixinguinha, a carteira de identidade, uma saideira, muita saudade.

Para a Varoa: A Medida do Bonfim, as sobras de tudo que chamam lar, as sombras, as marcas, as melhores lembranças e a aliança.

O que não se partilha: o prazer de me ver chorar

O que se renuncia: não vou lhe cobrar pelo seu estrago, meu peito dilacerado.

Tão simples se o conflito já surgisse equacionado dessa forma. Todavia, na prática, as rupturas não são delineadas com contornos de poesia. O peito dilacerado clama por indenização; a aliança e a medida do Bonfim são disputados a ferro e fogo, sob o pretexto de terem sido adquiridos por um ou por outro. A batida no portão faz muito alarde. A ajuda do novo amor para o aluguel não é bem-vinda. A devolução do Neruda não é um pedido mas imposição, e assim por diante.

Na Justiça, esse conflito seria abordado de forma bem objetiva: a quem cabe o quê. E assim, após várias audiências, avaliações e perícias, se dividiria em partes iguais: metade da aliança, o Neruda para um e o Pixinguinha para o outro, a Medida do Bonfim partida em duas metades.

Foi feita a justiça, como durante muito tempo achou-se o correto. Simples assim.

Eis que surge a Mediação, onde indaga-se, o que justo para cada qual, o que é posição e o que é interesse.

Para ele o interesse é a indenização pelo estrago, o peito dilacerado, o choro contido.

Para ela, não há o que indenizar, chegou o novo amor e não se fala mais nisso. Quer a partilha rápida, fica com a aliança, não liga para o Pixinguinha e não sabe onde está o Neruda.

É necessário que a mesma ouça o choro, saiba que ficaram sombras e marcas, e lembranças, além da aliança, para que as “partes” não sejam partidas, e possam superar a posição.

Só assim o portão se fecha sem alarde, e começa-se a vida com nova identidade.

MÁRCIA X ROBERTO

Márcia chegou abalada e ao mesmo tempo segura. Traço singular da sua personalidade. Contou que estava divorciada há mais de dois anos, tinha um filho André, então com 4 anos, e era, até aquele momento, independente financeiramente. O pai, Roberto, que estava obrigado por decisão judicial a pagar alimentos para o filho, o fazia apenas quando convinha, e ela, para evitar desgastes, deixava para lá. Todavia, a situação mudou. André foi diagnosticado com uma síndrome rara. Consumia todo o salário de Márcia e ainda faltava. Consumia todo o seu tempo, noites de sono, sua juventude. O pouco tempo livre do qual dispunha, deixou de existir.

Caso simples, a princípio. Duas execuções, a primeira requerendo a prisão do devedor, para que Roberto percebesse que as coisas tinham mudado, e a segunda para cobrar os alimentos em atraso, com a consequente penhora do bens.

Tudo corrida bem, graças a Deus. Roberto se tornou um pagador assíduo e, apesar de não pagar de imediato os alimentos vencidos, foi penhorado um veículo, cuja alienação seria suficiente para quitação do débito. Missão cumprida. Contente, liguei para Márcia. Caso resolvido. Qual não foi minha surpresa, quando a mesma, abandonando completamente a fleuma que lhe era peculiar, surtou: “Mas como você vai tirar o carro que ele usa para trabalhar?”

Contei até dez, desliguei o telefone e me perguntei: Onde foi que eu errei? Pela fala dela, era eu que estava tomando o carro dele e não ela. Ela não se via como Exequente. Acalmados os ânimos, marquei uma reunião. – Márcia, o que você pensa a respeito desses processos? Indaguei. Pela primeira vez, ouvi a cliente. Que vergonha. Então ela desabou. Que a simples regularização da pensão mensal já tinha sido suficiente. Que na verdade, o que ela queria era lembrar ao pai que ele tinha um filho que precisava dele. A questão financeira estava equacionada. A penhora do veículo não era necessária, pois isso poderia distanciá-lo ainda mais do filho. Era preciso que ele a ouvisse, visse seu cansaço, seu desalento, que buscasse o filho vez ou outra, que o acompanhasse nas terapias, fonoaudiólogos, fisioterapias. Que dividisse com ela a rotina. Ela estava triste, exausta, sozinha. O final? Chamamos o pai, explicamos a situação, propusemos um parcelamento da pensão em atraso, para que não ficasse sem o carro. Enfim…Roberto escutou pouco. Márcia continuou sobrecarregada. Mas conheceu um novo amor, não tive mais notícias, espero que estejam felizes para sempre…

O aprendizado ficou: escuta ativa, o que o silêncio ou o que não é falado comunica, o que é posição e o que é interesse, comecei a pensar na Mediação…

IMPARCIALIDADE DO MEDIADOR

Encontrei hoje em ruas,

separadamente, dois amigos…” Fernando Pessoa

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou a suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era um que via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exactamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.

Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.

A Imparcialidade do Mediador: Talvez, o maior desafio para quem se propõe a mediar seja despir-se de suas verdades. É ver a razão sob todos os ângulos, é permitir-se não saber, é ficar confuso. É saber que a verdade tem muitas faces. É não se contaminar pela verdade que lhe seja mais íntima. É não rechaçar a verdade que pessoalmente não lhe convém. É permitir que os amigos saibam das suas verdades e das suas razões. É se fazer ponte para que todas as verdades sejam ouvidas, aceitas ou não aceitas. É permitir que todas verdades prevaleçam, que outras verdades exsurjam, que apenas uma seja aceita, que nenhuma seja aceita. É não ter expectativas. É servir, serviço, ser viço, servir com viço, sem se fazer perceber.

DONA AMELINHA E SEUS CINCO FILHOS

Dona Amélia tinha seus 90 e poucos anos. Viúva. Difícil. Não ficava com uma ajudante. Todas tinham defeitos sem fim. A casa uma bagunça. Cachorro, gato, periquito e papagaio, todos conviviam na mais perfeita desarmonia. Um caos. Cinco filhos: Geraldo, Leonardo, Antônio, Tatiana e Heitor. Três noras. Situação complexa.

Cinco cabeças ou oito? Cinco verdades. Geraldo: enquanto minha mãe tiver uma gota de lucidez vai viver da forma que bem entende. Leonardo: Pessoal, pelo amor de Deus, nossa mãe precisa de cuidados, temos que interditá-la, ela tem condições financeiras para uma velhice digna, não precisa viver de forma tão precária e descuidada. Vamos procurar um casa para idosos, que tenha cuidadores preparados, com esse entra e sai de empregadas ela pode acabar vindo a sofrer maus tratos. Antônio: Mamãe gosta do canto dela, se tirarmos ele de casa ela morre. Vamos trocando de ajudantes. Ela não aceita cuidadora. Cada semana um de nós dorme na casa dela e assume os cuidados. Tatiana: silêncio, não contem comigo. Heitor mora em outra cidade, nem opinou.

Afinal, qual é a melhor verdade? Como conjugar tantas verdades, a maioria nutrida de responsabilidade e melhor intenção? Prevaleceu a vontade de Dona Amélia. Hoje com quase cem anos. Não houve interdição. Todos convivendo com a harmonia possível, cada qual feliz ou infeliz a seu jeito, sem vencidos ou vencedores.

ESCUTA ATIVA

A escutatória” Rubens Alves

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil…

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer…

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as ideias estranhas). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto. Ouçamos os clamores dos famintos e dos despossuídos de humanidade que teimamos a não ver nem ouvir. É tempo de renovar, se mais não fosse, a nós mesmos e assim nos tornarmos seres humanos melhores, para o bem de cada um de nós.

É chegado o momento, não temos mais o que esperar. Ouçamos o humano que habita em cada um de nós e clama pela nossa humanidade, pela nossa solidariedade, que teima em nos falar e nos fazer ver o outro que dá sentido e é a razão do nosso existir, sem o qual não somos e jamais seremos humanos na expressão da palavra.

Depois de Rubens Alves, qualquer definição da escuta ativa é empobrecida. Escuta ativa é só isso e tudo isso. Ouvir sem pré-conceitos, sem achar que sabemos. É saber-se privilegiado por cada palavra, sem se sentir pressionado pelos silêncios. É ouvir silêncios, sem interpretá-los. O silêncio é apenas o descanso da angústia.

“O clamor dos famintos e despossuídos de humanidade” muitas vezes é apresentado na forma de conflito, que teimamos em calar rápido, pelos nossos saberes, posto que nos incomoda o incômodo alheio, como se fosse sórdido e devesse ser varrido para debaixo de uma sentença.

Mas a sentença, muitas vezes, não cala o conflito, que escorre por entre as linha do Relatório, Fundamentação e Dispositivo. Nem tudo pode ser relatado, fundamentado e decidido em algumas páginas.

Há páginas de vida que nunca serão escritas, mas que podem ser ouvidas.

Ouvir sem saber e saber-se privilegiado por ouvir, isso é ESCUTA ATIVA.

GEOVANE E RUI

Geovane era casado. Um casamento morno. Água com açúcar. Até que conheceu Rui. Só então descobriu que outra maneira de amar valia a pena. Divorciou-se e iniciou um namoro respeitoso e público com Rui. Namoro que evoluiu para anos de convivência em apartamentos separados. Viajam juntos, festas juntos, finais de semana de juntos, planos juntos: Construir casa? Praia ou montanha? Jeans ou terno? Amigos comuns. Redes sociais: se tratavam mutuamente por marido. Declarações explícitas. Infelizmente Rui adoeceu gravemente. Meses de dor, cuidados, grupos de WhatsApp onde se compartilhava informações, evoluções, desabafos.

Geovane mudou-se para casa de Rui. Cuidou dele do primeiro ao último momento. Dedicação incansável. Rui faleceu. Inventário. Herdeiros necessários. Colaterais ou o companheiro? Mas não havia contrato de união estável! Gritam os irmãos. Tradicional família mineira. Nunca houve escuta, olhos que vissem e tato para o sentimento. O silêncio do pianista seria fundamental. O preconceito ensurdece, a ganância cega, a falta de delicadeza atropela. “Rui não gay ou se era sempre nos “respeitou”. Geovane nunca frequentou nossa casa. Geovane é interesseiro e, a se admitir que Rui era homossexual, Geovane foi só um namoro, quem sabe namoro qualificado.” Bradam os irmãos. Ruídos se espalham, testemunhas de um lado e de outro, preconceito que salta e ressalta. Rui não teve voz, não foi ouvido, por toda uma vida. Não formalizou a união com Geovane para não “afrontar”, mas sempre a admitiu de forma pública e notória.

No final, não se calou, quis que seu amor se mudasse para sua casa. Permitiu ser cuidado. Se declarou marido para quem quisesse ouvir. Deixou que o companheiro tomasse todas as decisões importantes: cuidadores, médicos, home care. Entregou-se de corpo e alma à verdade há muito calada. História sem final: Geovane busca de forma incansável seu reconhecimento, quer ser ouvido: enfrenta audiências, testemunhas, se expõe, vira do avesso, mas não se deixa calar.

FERRAMENTAS DA MEDIAÇÃO-SENSIBILIDADE DO MEDIADOR

Arroz de Palma Francisco Azevedo

Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.

A Mediação, por mais que se ensine, que se aprenda as ferramentas, é improviso. É intuição.

O Caucus ou sessões individuais, ocorrerão de acordo com a sensibilidade do Mediador. Muitas vezes os ânimos se alteram e, persistir na sessão conjunta pode provocar a escalada do conflito.

Da mesma forma as perguntas reflexivas, o momento de intervir, como perguntar sem direcionar, sem ansiedade, apenas pontuando e promovendo o diálogo.

O reenquadre, a habilidade de traduzir aquilo que não chega aos ouvidos, seja pela dureza de quem fala ou pela resistência de quem ouve, em algo palatável para se dizer e ouvir, algo simples e direto, sem agressão.

Validação de sentimentos – como é importante validar o que sentimos, sem nos preocuparmos em classificar como certo ou errado, justo ou injusto, positivo ou negativo. Somos seres humanos, sentimos raiva, medo, insegurança, inveja, ciúme. Importante reconhecer nos mediados esses sentimentos, sem julgamento, colocando-os no lugar certo, de maneira que não ofusquem os interesses ante as posições. Isso implica em acolhimento e confiança.

Resumo – Importante organizar ideias, alinhar diretrizes, firmar pactos, estabelecer combinados. Nesse momento o resumo é fundamental para dar clareza quantos aos próximos passos, o roteiro para a próxima reunião, os avanços e retrocessos. O que funcionou e o que não funcionou.

Tarefas – Quando se percebe que os interesses e posições estão muito emaranhados, é interessante estabelecer tarefas escritas reflexivas: O que eu quero hoje? Como quero estar no ano que vem? O que eu preciso para atingir esse objetivo? Enfim, não há um roteiro rígido a ser seguido. O Mediador deve perceber, pressentir, dançar de acordo com a ritmo da Mediação, sem perder a condução.

JOYCE X TIAGO

Namoro, união estável e depois casamento. Ambos bem sucedidos e independentes. Relacionamento difícil. Insistiram. Persistiram. Terapia de Casal. Briga com a sogra. Viagem de reconciliação. Rede social. Briga. Separação de fato. Reconciliação. Divórcio. Três cachorros. Um da época do namoro, outro da união estável e o último após o casamento.

Família multiespécie. Animal é coisa ou sujeito de direito? A doutrina acorda para novas realidades. Jurisprudência escassa. Ninguém quer nada do outro, mas não abrem mão dos cachorros. Guarda compartilhada? “Nem pensar…e se levar pra casa da mãe dele. Não admito. “

O que é posição? O que é interesse? Difícil. Qual ferramenta? Na sessão individual: “Ela é uma louca. Ele é um cretino, infantil, filhinho da mamãe.” Se “elogiam” mutuamente.

Perguntas reflexivas: Como foi quando vocês escolheram os cachorros? Tentativa de resgatar os bons momentos. Silêncio absoluto, não se permitiram compartilhar os bons momentos que desfrutaram. Medo de uma recaída? Provável. Qual o propósito da escolha dos animais na época que estavam juntos? Tentativa de chamá-los para um tempo em que havia alguma concordância. Também sem resposta, posto que

se convergissem só um pouco pudessem quebrar a intransigência que os sustentava. O que é melhor para os animais? Ela: claro que é ficarem comigo, já que o mais velho e os outros dois vão sentir falta do “irmão”. Ele: claro que é ficarem comigo, já que moro em casa e ela em apartamento. Não querem separar os cães.

Reenquadre: Então, se estou entendendo bem, ambos querem o bem-estar dos animais, que foram adquiridos com muito carinho, na época em que estavam juntos e ambos tem o melhor a oferecer. Mas continuam a discordar… Aff… E agora?

Validação dos sentimentos: Sinto que vocês estão magoados, pelo fim do relacionamento. Muitas questões conflituosas. A dor é normal e o sentimento de vazio nessa hora é grande. Talvez vocês precisem conviver um pouco com esse vazio, para que possamos marcar um próximo encontro. Até lá, seria possível estabelecer uma forma de contato de Tiago com os cães, em finais de semana, por exemplo?

Resumo: Que bom que vocês voltaram. Até aqui avançamos no sentido de que ambos querem o bem-estar dos animais. Mas não concordam com a guarda compartilhada. Foram possíveis os contatos de finais de semana? “Não. Ele levou para casa da mãe dele que deu carne para os cachorros. Ele sabe que sou vegetariana e não admito que eles sejam alimentados dessa forma.”

Tarefas: Teremos mais uma sessão. Importante que vocês reflitam que, caso não cheguem a uma conclusão, o juiz decidirá por vocês e isto implica que os cachorros poderão ser separados, divididos. Vocês terão que se encontrar em audiências. Dispenderão tempo e dinheiro. Reflitam, o caminho é esse? Muitas vezes precisa ser.

O ADVOGADO NA MEDIAÇÃO

O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”

Ariano Suassuna

O principal fomentador da Mediação é o Advogado. Ele acompanha o cliente e legitima o Instituto. O Advogado pode vir a ser um Mediador, ou um Advogado Colaborativo. Importante ressaltar que o Advogado Adversarial sempre terá espaço, posto que nem todos os litígios são mediáveis. O principal é conhecer todos os caminhos.

Nesse sentido, difundir a Mediação como panaceia para o congestionamento do judiciário é otimismo ingênuo.

Negar a Mediação, como se o Instituto não tivesse conquistado sua credibilidade e espaço, é um pessimismo desgastado e arcaico.

O advogado realista esperançoso é aquele que avalia conflito como mediável ou não, aponta para o cliente o caminho da Mediação/Conciliação/Negociação ou do Litígio e o acompanha, durante todo o processo.

Sejamos, pois, estudiosos, em primeiro lugar e realistas esperançosos na condução do conflito.

JÚLIA E GUSTAVO

Júlia chegou aos quarenta e pouco anos, bem vividos, mas com a sensação de que faltava o véu e grinalda. Conheceu Gustavo nos cultos religiosos que frequentava. Avaliou o perfil: solteiro, situação estável, casa própria, bom partido. Não hesitou. É ele.

Casou com o casamento, por assim dizer. Véu e grinalda, damas de honra, recepção, cortaram o bolo juntos, fotos, lua de mel. Ao final de um ano descobriu que estava morando com um total desconhecido. Agressivo, mudo. Passava dias sem trocar uma palavra. Enlouquecedor. Precisava sair da relação. Estava desempregada, largou o emprego por exigência dele, logo no início do rápido namoro. Gastara todas suas economias na festa de casamento, lua de mel e reforma do apartamento dele. Não tinha para onde ir. Ele sequer abastecia a geladeira. A relação chegou no limite. Agressão. Ordem de afastamento. Ela ficou no apartamento. Ele não se conformou. Anos de litígio. Quem gastou com o quê. Quais foram as benfeitorias. O advogado do caso altamente beligerante. Reintegração de posse, aluguel pelo tempo que a Júlia usufruiu do imóvel, indenização pelo sofá e televisão que ele encontrou estragada e por aí vai… Contestou a possibilidade de alimentos provisórios veementemente. Uma lástima.

Tomou literalmente as dores do cliente. No final eu não sabia quem era a “parte”. Juiz moroso. Mas não havia pelo que brigar. Ela saiu do apartamento levando alguns móveis e pertences, sem nada praticamente. Ele ficou com o apartamento e com as benfeitorias permanentes. Mas até hoje o processo se arrasta. Se me perguntarem a razão, terei dificuldade em responder. Indenização? Mas ela continua sem condições e ainda se tivesse, indenizar o que? Entrei em contato inúmeras vezes com o advogado: Dr., vamos finalizar o processo? Resposta: O cliente não quer!

Mas sigo esperançosa, ora meio ingênua, otimista.

Conclusão

Amo Cora Coralina e Aninha e suas Pedras, para mim, um dos seus mais belos poemas:

Não te deixes destruir… Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas. Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir. Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

e não entraves seu uso aos que têm sede.

Prezado leitor, para você que me acompanhou até aqui, faço minhas as palavras de Cora. Construa poemas, remova pedras, recria tua vida, sempre, sempre, sempre. Faz doces. Comece por você, depois pelo outro. Afaste-se da mesquinhez e das fórmulas prontas. Não confie em quem diz que tudo sabe. Permita-se não saber. Viva no coração dos jovens e nas gerações futuras como semeador de paz e esperança. Não seja obstáculo. Seja caminho, ponte, construção. Seja escuta e afago. Tenha tato. Delicie-se com seus sentidos para verdadeiramente chegar no outro.

Poderíamos continuar a viagem, com poemas e “causos”… quem sabe possamos nos encontrar. Quero ouvir suas histórias.


fonte: Livro Mediação, a Travessia Através da Palavra