Esboço sobre uma teoria do conflito

por Samuel Saliba Moreira Pinto

Teorias são sistemas/doutrinas com fundamento em conjuntos de princípios (FERREIRA, 2001, p. 668). São algo para se questionar e argumentar; e proporcionam fontes para a formulação de pretensões de validade, delineamento de inferências e contribuições, e construções de generalizações. Permitem questionar, argumentar, e se engajar em debates racionais. São algo usado para sustentar pontos em meio a uma argumentação (STR, 2018).

Teoria, em José Paulo Netto, é “um conjunto articulado de explicitações metodológicas acerca de um objeto muito determinado” (apud BOSCHETTI, 2016).

Teorizar seria, pois, a ação de ver, observar, examinar para conhecer, contemplar, meditar, estudar, especular intelectualmente, por oposição à prática. Trata do exame de ideia (s) e conceito (s), com o significado de raciocinar, pensar, demonstrar, julgar, meditar e refletir. (CHAUI, 1994, p. 361).

No presente artigo, pretende-se uma breve descrição de uma articulação de ideias sobre conflito, visando compreendê-lo e, a partir daí, pensar eventuais soluções para uma pacificação social. Voluntariamente far-se-ão os devidos recortes, a fim de traçar algumas linhas introdutórias sobre o conflito que é objeto da mediação — notadamente a judicial.

Adotar-se-á como referencial o (constante no) Manual de Mediação Judicial (MMJ), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a fim de garantir uma adequada delimitação do objeto a ser investigado; e serão utilizadas outras fontes em caráter subsidiário.

A Lei 13.140/15, que “dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública”, define a mediação como “a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”.

E partindo da ideia de que os conflitos nascem de quebras na comunicação, tenta-se por meio da sessão de mediação um melhoramento no diálogo entre as partes, como condição que possibilita a composição, um entendimento, um consenso, ex vi do artigo 4º, §1º, da Lei 13.140/2015 (BRASIL, 2015).

A mediação tenta (r) estabelecer a boa comunicação entre as partes, pretendendo, assim, que haja a construção por elas de uma solução para o (s) conflito (s). Trata-se, pois, de método consensual de solução de conflitos. (OPPITZ apud PINTO, 2021).

Isso porque com a mediação é possível que seja solucionada não apenas a lide processual (os pedidos articulados pelas partes em um processo), mas — e principalmente — o conflito subjacente, i. e. a causa eficiente da disputa, o que no mais das vezes melhora a relação e evita futuras demandas. (OPPITZ apud PINTO, 2021) [1].

O atual CPC, amplamente projetado para a autocomposição, em diversos dispositivos valoriza esses métodos consensuais de solução de conflitos, e preconiza que “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados” (BRASIL, 2015).

E esse conflito, nos diz o MMJ, seria “um processo ou estado em que duas ou mais pessoas divergem em razão de metas, interesses ou objetivos individuais percebidos como mutuamente incompatíveis”. (YARN apud BRASIL, 2016, p. 49). Seria também “um elemento da vida que inevitavelmente permeia todas as relações humanas e contém potencial de contribuir positivamente nessas relações” (BRASIL, 2016, p. 56).

A despeito de intuitivamente ver-se o conflito como algo negativo, causador de sentimentos ruins e provocador de reações tendentes ao afastamento, “Constata‑se que [dele] podem surgir mudanças e resultados positivos” (BRASIL, 2016, p. 49-50); i. e., de um conflito, nos diz o MMJ, podem advir “paz, entendimento, solução, compreensão, felicidade, afeto”, entre outras coisas boas, notadamente “aproximação”. (BRASIL, 2016, p. 51).

A visão de que de um conflito podem advir coisas boas, nos diz o MMJ, “consiste em uma das principais alterações da chamada moderna teoria do conflito”, conquanto “a partir do momento em que se percebe o conflito como um fenômeno natural na relação de quaisquer seres vivos”“é possível” vê-lo “de forma positiva”. (BRASIL, 2016, p. 51).

O exemplo trazido é aquele em que após uma declaração de abertura (ato inicial de uma sessão de mediação), umas das pessoas participantes atravessa-se contra a pessoa mediadora, reclamando da sessão e sustentando sua demora e eventual inconveniência. Uma visão positiva do conflito permitiria à pessoa mediadora uma oportunidade — a partir daquele (aparente) conflito. (BRASIL, 2016, p. 51). Assim, em vez de, p. ex., retorquir, elevar a voz e/ou outra conduta tendente a potencializar o conflito, poderia 1) demonstrar às pessoas participantes “como se despolariza uma comunicação”. 2) refletir sobre um (eventualmente necessário) aperfeiçoamento de suas práticas, e 3) pensar que na realidade aquele ato seria apenas “um pedido realizado por uma pessoa que ainda não possui habilidades comunicativas necessárias” (BRASIL, 2016, p. 51), reflexo de desconhecimento acerca da sessão de mediação.

despolarização, no ponto, seria “O ato ou efeito de não perceber um diálogo ou um conflito como se houvesse duas partes antagônicas ou dois polos distintos (um certo e outro errado)”. (BRASIL, 2016, p. 53, grifei). De outro lado, poderia haver uma espiral do conflito, caracterizada por um “círculo vicioso de ação e reação” onde “Cada reação torna‑se mais severa do que a ação que a precedeu e” cria-se “uma nova questão ou ponto de disputa”, e as “causas originárias progressivamente tornam‑se secundárias a partir do momento em que os envolvidos mostram‑se mais preocupados em responder a uma ação que imediatamente antecedeu sua reação”. (BRASIL, 2016, p. 54).

O MMJ faz referência à uma distinção entre “conflito” e “disputa”, havendo essa “quando uma pretensão é rejeitada integral ou parcialmente, tornando‑se parte de uma lide” envolvendo “direitos e recursos que poderiam ser deferidos ou negados em juízo”. (BALEY apud YARN apud BRASIL, 2016, p. 53-54). Assim, a disputa teria lugar “depois de uma demanda ser proposta”, e “Um conflito se mostra[ria] necessário para a articulação de uma demanda”, de modo que pode existir um conflito sem que houvesse uma demanda, i. e., disputa; mas “uma disputa não poder existir sem um conflito”. (YARN apud BRASIL, 2016, p. 54).

Tratando da mediação a partir de Luís Alberto Warat, Rocha e Gubert (2017, p. 117), apontam que “O conflito se instala […] como um confronto de vontades”, e, assim, “o mais importante seria […] permitir às partes conflituosas um momento de autoconhecimento e de retorno ao equilíbrio com seu próprio eu, ao invés de apenas encaminhá-las para a negociação de um acordo que tenta barganhar as vontades opostas”.

Dito de outra forma, “A mediação não estaria voltada para a necessária obtenção de um acordo ao final de um prazo pré-estipulado”, mas a possibilitar “o direito a dizer o que nos passa, ou uma procura do próprio ponto de equilíbrio e do ponto de equilíbrio com os outros”, sendo função da pessoa mediadora o auxílio das partes “a ouvir [em] uma linguagem mais apropriada para esta expressão” (WARAT apud ROCHA; GUBERT, 2017, p. 117).

Em Silva (2020, p. 141), “todos os conflitos interpessoais podem ser trabalhados pela mediação”, sendo “uma visão do tipo ganha/ganha, eis que, se a mediação não culminar num acordo, no mínimo, os participantes terão conversado e esclarecido os meandros do conflito de maneira respeitosa e produtiva”, pois a obtenção de acordo não é o objetivo primeiro, já que o que se pretende é o r(estabelecimento) do diálogo entre as pessoas em conflito, para “que melhorem o relacionamento e busquem as soluções de seus problemas sozinhas”.

O atual CPC, tratando dos Conciliadores e Mediadores Judiciais, estabelece que o primeiro atuará, preferencialmente, nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes”, podendo “sugerir soluções para o litígio”, observadas as cautelas para que haja voluntariedade; e o segundo “atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes” — e sua função será de prestar-lhes auxílio na compreensão das questões e interesses em conflito, de modo que possam, “pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si […], soluções consensuais que gerem benefícios mútuos” (BRASIL, 2015).

Com efeito, a mediação se mostraria mais adequada quando houvesse “uma relação interpessoal” entre as pessoas envolvidas, e a conciliação se mostraria “suficiente para resolver questões” envolvendo “partes” sem “vínculo interpessoal ou a intenção de estabelecê-lo” (OPPITZ apud PINTO, 2021) [2].

Conforme MMJ, “A abordagem do conflito — no sentido de que este pode, se conduzido com técnica adequada, ser um importante meio de conhecimento, amadurecimento e aproximação de seres humanos — impulsiona também relevantes alterações quanto à responsabilidade e à ética profissional” (BRASIL, 2016, p. 56); sendo a mediação, em si, uma forma construtiva de solução de conflitos, pois em havendo a (auto)composição, “as partes concluiriam a relação processual com um fortalecimento da relação social preexistente à disputa”“e, em regra, robustecimento do conhecimento mútuo e empatia” (DEUTSCH apud BRASIL, 2016, p. 55-56).

Fundamental, pois, que a pessoa mediadora investigue quanto à diferenciação entre conflito (s) e disputa (s), para adotar a melhor abordagem e mormente porque no processo judicial (a partir de uma decisão heterocompositiva), nos diz o MMJ, aborda-se somente o aspecto jurídico, limitando-se o escopo da decisão (jurídica) aos interesses juridicamente tutelados (em disputa), sendo excluídos aspectos do conflito “possivelmente tão importantes quanto ou até mais relevantes do que aqueles juridicamente tutelados” (BRASIL, 2016, p. 55).

No caso da decisão heterocompositiva, que põe fim apenas à disputa (lide processual), poderia também haver o “enfraquecimento ou rompimento da relação social preexistente”, com eventual “tendência de o conflito se expandir ou tornar‑se mais acentuado no desenvolvimento da relação processual” (DEUTSCH apud BRASIL, 2016, p. 55).

Daí porque, em Zamora Y Castillo (apud BRASIL, 2016, p. 56), necessários “novos modelos que permitam que as partes possam, por intermédio de um procedimento participativo, resolver suas disputas construtivamente ao fortalecer relações sociais”, identificando os “interesses subjacentes”, e promovendo “relacionamentos cooperativos [e] estratégias que venham a prevenir ou resolver futuras controvérsias”, além de “educar as partes para uma melhor compreensão recíproca”. (RHODE; BARUCH BUSH apud BRASIL, 2016, p. 56).

Caracterizam-se os processos construtivos, onde inclui-se a mediação, “pela capacidade de estimular as partes a desenvolverem soluções criativas que permitam a compatibilização dos interesses aparentemente contrapostos”“pela capacidade de as partes ou do condutor do processo […] motivarem todos os envolvidos para que prospectivamente resolvam as questões sem atribuição de culpa”“pelo desenvolvimento de condições que permitam a reformulação das questões diante de eventuais impasses” e “pela disposição de as partes ou do condutor do processo a abordar, além das questões juridicamente tuteladas, todas e quaisquer questões que estejam influenciando a relação (social) das partes” (DEUTSCH apud BRASIL, 2016, p. 55-56).

Pensado, pois, o conflito como algo potencialmente positivo, decorrente de (uma) natural quebra da comunicação entre duas ou mais pessoas (naturais e/ou jurídicas), e tendo-se por base as amplas possibilidades da mediação, que operam com uma racionalidade diferente daquela da decisão heterocompositiva, fundamental que haja a sua efetiva estimulação, como condição que possibilita a pacificação social de forma cooperativa e previne disputas, contribuindo especialmente para a segurança jurídica.

Referências
BOSCHETTI, Ivanete. INTRODUÇÃO AO MÉTODO DE MARX com JOSÉ PAULO NETTO (primeira parte) – PPGPS/SER/UnB. Youtube, 2016, Brasília/DF. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2WndNoqRiq8. Acesso em: 12 maio 2022.
BRASIL. Lei Federal nº 13.105, de 16 de março de 2015.  Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 12 maio 2022.
BRASIL. Lei Federal nº 13.140, de 26 de junho de 2015.  Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera a Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o §2º do artigo 6º da Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm. Acesso em: 12 maio 2022.
BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Azevedo, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial, 6ª Edição (Brasília/DF:CNJ), 2016. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2015/06/f247f5ce60df2774c59d6e2dddbfec54.pdf. Acesso em: 12 maio 2022.
CHAUI. Marilena. Introdução à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. 1 v.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio século XXI: o minidicionário da língua portuguesa. 4. ed. ver. ampl. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
PINTO, Samuel Saliba Moreira Pinto. Mediar ou não mediar, eis a questão. Revista Eletrônica Consultor Jurídico (ConJur), São Paulo/SP, 02 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-02/samuel-saliba-mediar-ou-nao-mediar-eis-questao. Acesso em: 12 maio 2022.
ROCHA, Leonel Severo; GUBERT, Robert Magalhães. A Mediação e o Amor em Luís Alberto Warat. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 33, n.1, p. 101-123, 2017. Disponível em: https://revista.fdsm.edu.br/index.php/revistafdsm/article/view/154/155. Acesso em: 12 maio 2022.
SILVA, Reinaldo Marques da. A mediação na solução de conflitos empresariais. Polifonia – Revista Internacional da Academia Paulista de Direito, v. 5, p. 136-158, 2020. Disponível em: https://apd.org.br/a-mediacao-na-solucao-de-conflitos-empresariais/. Acesso em: 12 maio 2022.
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[1] Em não havendo a composição, mas a solução dada por terceiros, há apenas a finalização do processo, com o atendimento ou não dos pedidos articulados. (PINTO, 2021).

[2] Não se ignora, porém, que há referência legal a atuação preferencial (ex vi do artigo 165, §§2º e 3º, do CPC), i. e., possível a abordagem de uma forma ou de outra e inclusive híbrida.

Samuel Saliba Moreira Pinto é advogado e mestre em Direito pela Unisinos

fonte: Conjur